(continuação)
XXV
É diferente estar atrás ou à frente daquela espécie de corrimãoo. Eu já estivera atrás dele muitas vezes, no passado. Retratando da vida o lado trágico, para servir de pasto aos caçadores da desgraça humana nas páginas dos jornais. Á frente, era a primeira vez. Ali, a desgraça está sempre à frente. Ganhando, vista lá detrás, contornos de comédia. Nunca me tinha apercebido de que o juiz está num plano superior ao das restantes pessoas da sala. Não há justificação para isso. Não é para ver melhor. Afinal, ninguém se interpõe entre ele e os seus interlocutores, sejam os advogados, o réu ou o escrivão. Também não é para julgar melhor. Julgar obriga a descer às profundezas das pessoas. Por isso, mais difícil quanto mais alto se está. Eu não tinha testemunhas. Não se tem testemunhas para os actos solitários das nossas consciências. Continuam todos a falar, ordeiramente, um de cada vez. Maria do Céu Silva. Maria do Céu Silva. Maria do Céu Silva. Tantas vezes falam no seu nome, Maria do Céu. Como se a tivessem conhecido toda a vida ou, pelo menos, bem.
Durante os dias da minha prisão, a aguardar julgamento, Maria do Céu, tive oportunidade de pensar muito no que ia fazer. Por mais duma vez, admiti poder dizer seres uma mulher da vida, apanhada na rua ao acaso e levada para o meu apartamento naquela noite, sem saber do teu estado. Sei lá... Não sei nada... Não a conhecia... Engatei-a em Santos Pousada e levei-a para casa... para uma noite de farra... sabia lá que ela estava assim... Era uma resposta cómoda. Deixaria para a polícia averiguar o resto. Não teriam dificuldade em te localizar no passado. A partir daí, seguiriam os teus passos. São como rafeiros, sabes? Aspiram um cheirinho e descobrem a caça toda! Talvez fosse difícil fazer o médico de Gonçalo Cristóvão admitir ter-te feito o aborto. A única testemunha viva era eu, todos os outros tinham sido executores da sentença. E, se assim acontecesse, a autópsia determinaria a causa da morte e serias um caso arquivado à espera de provas. De qualquer modo, eu estaria salvo. Só ficaria em perigo se chegassem até ao médico e ele, simultâneamente, admitisse tudo. Então, identificar-me-ia. Digo-te isto tudo agora, Maria do Céu, porque quero que saibas até onde poderia ter ido a minha cobardia. Tu estavas morta, nada poderia ser remédio para o passado. Ou melhor, tudo estava resolvido, remediado. A morte é a grande pacificadora da humanidade, Maria do Céu. Creio ser essa a grande justificação das guerras. Muitas mortes acabam por trazer a paz tão desejada. Só é pena a morte ser também um vazio, um vazio imenso, tão vazio que não deixa meter nada lá dentro. Nem pensamentos, nem sentimentos. E aniquila-nos a vontade. Foi provavelmente por isso, Maria do Céu, pela aniquilação da vontade, que acabei por me decidir a confessar tudo. Tudo não. Decidi confessar apenas a minha parte. Não tinha o dever de assumir a confissão dos outros envolvidos. Também não tinha o direito. O Miguel nem sabia. O médico ajudara-nos. Envolver os outros seria fatigante. Os interrogatórios, as acareações, as reconstituições, sei lá que mais. E injusto. Só nos tinham querido ajudar. E, além disso, queria que me deixassem só contigo o mais depressa possível. Pressentia estares necessitada de mim. Ou talvez fosse eu a precisar de ti. Tanto faz. Desejava tanto que estivéssemos juntos...
(continua)
Magalhães Pinto
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