Vasculho as crónicas antigas. Nem por saudade nem por vaidade. Tão só para ver a diferença que vai no meu Portugal no confronto com as minhas memórias. Espanto-me a mim próprio. Tantas que poderia ser republicadas hoje. Algumas, amargas, poderiam conter hoje maior amargor. Relembro a frase feita que declara o meu país eternamente adiado. Assumo-a. Melhor passar por imitador do que complicar a verdade. Melhor soltar o verbo comum do povo persistentemente iletrado do que presumir sabedoria de génio ineficaz. Uma resultante do que eu próprio pensei noutros momentos, já perdidos nas calendas: Portugal não só não está em desenvolvimento – nem económico, nem social, nem político – como é bem possível que esteja retrocedendo. Nenhuma das razões por que falava há quatro, cinco, seis anos atrás desapareceram, foram melhoradas, deixaram de dar razão a um fala-barato como eu. O desemprego aumentou. As ajudas sociais diminuíram. A assistência na saúde, na infância, na velhice, piorou. A justiça é tanto ou mais demorada. A segurança de pessoas e bens é menor. O endividamento das famílias é maior. Os impostos aumentaram, até passarem o limiar do suportável. Os preços subiram mais do que os rendimentos, excluindo os lucros dos grandes grupos. Fecharam-se centros de saúde, maternidades. Um inusitado número de cidadãos passou a nascer na estrada, em ambulâncias, numa versão moderna aciganada. A corrupção deixou de ser escondida e campeia, rosto descoberto, à desfilada. O meio ambiente nunca foi tão desrespeitado. Se não pelos despejos industriais e domésticos, pela construção desenfreada em locais a preservar. Nem sequer a liberdade de falar é já respeitada como outrora o foi. Ah! Esqueço-me de algo que melhorou: proibiu-se o fumo em todos os recintos fechados excepto a casa de cada um. Portugal é um país em recessão social sem nicotina.
Atente-se nisto que escrevi no passado:
À medida que vamos ouvindo aqueles que se dão ao trabalho de pensar em Portugal, vamos percebendo o tempo precioso que está a ser perdido devido à pusilanimidade de uma classe política sem coragem. Não é por acaso que, depois de termos feito francos progressos na década que mediou entre 1985 e 1995, tendo, inclusivamente, abandonado a lanterna vermelha da Europa, em termos de desenvolvimento social e económico, voltamos a empunhá-la. O economista que serve de referência a estas notas chegou a ser implacável ao estabelecer, por contraponto à Nova Economia, o que era uma Economia Antiga, velha e relha, pronta para deitar ao caixote da História:
"Um Estado monopolista, sem confiança na sociedade civil. Que tenta fazer tudo sem fazer nada bem. Com dificuldades no cumprimento da Lei. Que precisa de se financiar através do aumento dos impostos. Com burocracia crescente e autoritária por si mesma. Um Estado com uma Justiça ineficiente, onde o crime compensa. Que gera corrupção através da concessão de benefícios e subsídios. No qual só os ingénuos cumprem. Que contribui para o caos através da criação de instituições paralelas, dando lugar a uma sociedade civil sem iniciativa, com as pessoas encostadas ao mesmo Estado".
António Borges
Não é possível, por melhor boa vontade que se tenha, descolar Portugal da imagem da Economia Antiga que o conceituado economista traçou em meia dúzia de pinceladas. O Governo, que Deus e a boa vontade dos portugueses nos deram, parece empenhado em guardar as tradições. É caso para dizer, como lucidamente Vasco Pulido Valente o faz na sua crónica do “Público” do último Domingo, que “o que se passa no interior de certos ministérios, de que depende a orientação da economia, nunca chega à rua”. Nem isso, nem o resto, diria eu. O Governo é o Conselho de Administração de uma gigantesca empresa chamada Estado, que só tem accionistas microscópicos, dispondo de apenas um voto cada um na Assembleia Geral. O que dá azo, ao mesmo Governo, de gerir a empresa a seu bel-prazer, sabendo por conhecimento certo, que não será responsabilizado nem pelo comprometimento do futuro, nem pelas dívidas que deixar, nem pela depredação do património material e moral da empresa, nem pelo enriquecimento sem justa causa que permitiu a alguns, nem pelo empobrecimento cheio de injustas causas que provocou na maioria.
É previsível que o actual regime não se aguente muito tempo. Portugal sofre, nos tempos que correm, uma dura proletarização. Desde os anos sessenta que a sociedade portuguesa teve um pilar forte que lhe dava coesão, a classe média. Foi essa classe média (e a baixa, naturalmente, todavia minoritária) que deu as boas-vindas ao “25 de Abril”. Que lhe amparou a vocação democrática quando ameaças surgiram. Que colaborou no desenvolvimento – esse sim, que houve – dos finais dos anos oitenta e inícios dos anos noventa. Estamos a assistir a um processo acelerado de degradação da classe média. Entenda-se-me bem. Claro que hoje, mais de trinta anos passados – meia geração! –, há uma classe média em Portugal. Ainda. Porque há endividamento. Não tivesse sido possível tal endividamento e já não havia classe média. Os activos dos bancos, todos somados, mostram o que há para pagar. Todos os anos mais. Todos os dias mais. Um processo que não pode eternizar-se. E, porque não pode, todos os dias há mais alguns proletários. “Vivendo” amargamente a escassez dos seus recursos. Quando o processo não tiver por onde manter o seu desenvolvimento, o regime cai.
Será que é possível que, em lugar de cair, se transforme? É difícil. Disse um dia um distinto jurista, professor universitário:
"Os partidos existem para ganhar eleições. E, para ganhar eleições é preciso não descontentar ninguém. Esse é o problema. Não se trata de convencer, mas de não hostilizar. Os políticos nunca emitem uma opinião controversa, porque temem perder um voto; daí, a ausência de reformas. Há que fazer a reforma do sistema eleitoral. Que os partidos (leia-se, os seus directórios) não querem".
André Gonçalves Pereira
Os partidos sabiam disto. Por isso, ao elaborarem a Constituição, reservaram para si o direito de só eles poderem ser nomeados para o tal Conselho de Administração da grande empresa que é o Estado. Quando este regime já não puder prosseguir, creio que será essa a primeira machadada que os partidos levarão, deixar de ter a exclusividade de acesso. É urgente partir em pedaços essa exclusividade. Cavaco Silva apontou, no seu discurso de 5 de Outubro, a necessidade de municipalizar as escolas. Não é só a Educação que necessita de ser municipalizada, Senhor Presidente. É tudo, menos as Forças Armadas e os investimentos nacionais. A Saúde deve ser municipalizada. A Justiça deve ser municipalizada. A Segurança deve ser municipalizada, tanto a física como a social. A Ordem deve ser municipalizada. O Meio Ambiente deve ser municipalizado. Numa Europa Comum não faz sentido outra coesão nacional que não seja a que é garantida pelas raízes comuns e pelos laços étnicos. Queremos ter o Conselho de Administração ao alcance da mão, tanto para que ouçam os nossos aplausos como para levarem uma bofetada. Com uma vantagem presumida. Não fiz as contas mas, como dizia o meu pai trasmontano que Deus lá tem, punha o meu pescoço no cutelo em como isso dominava o défice do Estado mais rapidamente e com menos sacrifício do que podemos ver neste momento.
Até lá, até que as coisas verdadeiramente mudem – e não será nunca pelas eleições do actual regime que veremos a mudança – soframos humildemente as consequências do nosso próprio querer.
Crónica QUAL DESENVOLVIMENTO? - Magalhães Pinto - "VIDA ECONÓMICA" - 10/10/2007
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