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3.10.07

MEMÓRIA

Hospitalidade. Brandos costumes. Paciência. Conformismo. Entre homens e mulheres, velhos e crianças, somos aí uns dez milhões, só neste canto quase a afogar-se no Atlântico. Muitos mais por esse Mundo fora. Somos universais. Somos úteis. A nossa história é rutilante. Pelo menos até 1974. Depois contaram-me que a nossa História é uma porcaria. Já não sei se o brilho da História lhe é próprio ou se depende dos olhos que a vêem. Isto é, a porcaria está na História ou nos olhos? Tive ideais, tive sonhos, nesta vida que já vai um pouco adiantada. A minha família. Estudar para ser alguém. E, por isso, adorar a minha escola. "Somos pequenos lusitos, mas já firmes e leais…". "Lá vamos, cantando e rindo…". Defender a Pátria. Ter um trabalho de que gostasse. Construir uma carreira profissional. Dar um futuro aos filhos. Viver com eles uma vida limpa, ainda que sem luxos. Ensiná-los a respeitar os outros como queriam ser respeitados. Servir a minha comunidade com a experiência acumulada. Decidir contra mim em caso de dúvidal. Pensar no Outro como se fosse eu próprio. Uma série de pensamentos feitos, nos quais eu acreditava.

Rebentaram-me com tudo. A família é um caco. Não se estuda. A escola é o inferno neste mundo. Já não sou lusito e não o lamento, mas não sei o que sou em troca, o que lamento. Já não canto nem rio e isso até podia ser bom. Mas já nem sequer me vale a pena gritar, irado. Disseram-me que eu não tinha defendido Pátria nenhuma, o que, se calhar, era verdade. Mas não me deram uma outra Pátria em troca. De algum modo, sou um pária. Trabalhei e, durante algum tempo, isso foi bom. Mas, hoje, não há trabalho que se veja. Carreira profissional? O que é isso? Não vejo futuro para os filhos. Ou pior. Ver eu vejo, mas é negro como o breu. A vida limpa está reduzida a correrias para o banco, a ver se não me tiram a casa devido à falta de pagamento de três prestações já. Caramba! A casa para viver não é nenhum luxo. O respeito recíproco é um dinossauro. Desapareceu. Extinguiu-se. Servir uma comunidade onde cada um apenas se serve a si? Nem sequer preciso de decidir contra mim em caso de dúvida. O fisco encarrega-se de fazer isso. E já nem o Natal faz com que pense no Outro, absorvido como estou na minha própria angústia.

Ah! Deram-me algo precioso por contrapartida da minha autorização para me rebentarem com tudo. Deram-me a Liberdade. Liberdade para falar. Liberdade para dizer mal. Liberdade para me juntar aos outros onde e quando os meus interesses o ordenarem. Liberdade para escolher entre viver pobre ou viver miserável. Liberdade para escolher entre estar desempregado ou fazer biscates. Liberdade para me manifestar na praça pública, sempre sem nenhum resultado visível. Liberdade para votar as alternativas que me oferecem e não as que eu gostaria de ter. Liberdade para ter os meus filhos incultos, deseducados, sem objectivos, sem projectos, sem sonhos a realizar. Liberdade para votar. Oh! Liberdade para votar! Essa sim, a minha grande Liberdade. Vejam só esta campanha eleitoral presidencial. Patética. Isso mesmo, de patetas. Quatro senhores que querem ser meus Presidentes a darem um triste exemplo do que é não ter respeito por nada. Dizem que um deles, o quinto, se cala. Abençoado o calado. Ao menos, não diz patetices. Já os vejo vestidos, aos tais quatro, com o manto verde do insulto, a fazerem nada, como é costume. Esse o maior mal que provocam. Fazerem-me descrer da Liberdade. Se a Liberdade foi solta das grilhetas que a prendiam para permitir ao Doutor Mário Soares ser o Insultador-Mor deste pobre reino, que se lixe a Liberdade. Com a sua atitude, está insidiosamente a avolumar no meu espírito a ideia de que não precisamos de Presidente para nada. E, se não precisamos de Presidente, eu não preciso de votar. E, se eu não preciso de votar, não preciso da Liberdade para nada. Além de que a Liberdade não se pode comer. Não se pode vestir. Não paga as prestações da casa. Não está a ensinar os filhos a serem homens de verdade. Não está a dar uma escola consistentemente educadora para que lhos confiemos. Nem sequer me dá a Justiça de que preciso. Vejam só que, a partir de agora, alguém vai decidir se o meu caso, se o crime que me atingiu, deve ser julgado agora ou para as calendas gregas. Isto é, se vai ser julgado ou se vai prescrever. Nem sequer, desditosa Liberdade, acrescentas nada à solidariedade que devíamos sentir de cada qual para com todos os outros.

Podem chamar-me louco. Até posso, porventura, ser o único louco deste meu país em farrapos. Mas lamento ter agarrado a Liberdade como se fora o grande sonho, o grande projecto, o grande objectivo, no meio dos meus pequenos sonhos comezinhos de quando não tinha Liberdade. O entusiasmo dos primeiros tempos. A participação exaustiva. O sacrifício dos tempos próprios ao serviço dos outros. A ânsia de fazer sempre mais e melhor. De superar o companheiro do lado. Numa emulação de que terceiros saíam beneficiados. Uma ou outra decepção não chegavam para provocar o esmorecimento. Na alma, e sempre, o orgulho de estar a viver a Liberdade. As noites bem dormidas quando mais um problema do Outro ficava resolvido. Ou, pelo menos, atenuado. O passar dos anos. O consumo de energia a reduzir, subrepticiamente, a capacidade de dar-se. As decepções a acumularem-se, imperceptivelmente, como lixo, no canto da alma que raramente, por receio ou esquecimento, se visita. A progressiva compreensão da supremacia do formal sobre o substancial. Ainda e sempre, um sopro de energia, encontrada sabe-se lá onde, para um derradeiro esforço. Já sem entusiasmo. Apenas o sentido do dever a comandar a vontade. E a decepção final. A arrasar com os cacos. A reduzir a pó o orgulho de ser português.

Com miríades de luzes e sonoras trombetas, reunindo todos os arautos do reino, oferecem-me algo que, dizem-me, levantará o meu orgulho. Um aeroporto e uns combóios rápidos. Porque será esta obsessão pelas obras públicas? Ah! Keynes! As obras públicas como motor da luta contra a recessão. Mas isso foi em 1920. Há um século. Com uma guerra mundial a acabar e outra quase a começar. Hoje, isso já não funciona. Pelo menos, não funciona se tudo o resto não funcionar também. Além de que já não há guerras mundiais. Obrigado. Mas o meu orgulho não se levantou da lama nem um milímetro.

Os meandros do raciocínio não se perdem no nada. Olho para dentro de mim e compreendo. Pelo menos, todas estas vicissitudes fizeram de mim um homem atento. Acho que, sem a Liberdade, nunca teria percebido que a comunidade à qual pertenço vive atormentada nas suas carências, nos seus defeitos, nas suas insuficiências. Incluindo eu próprio. Valho muito menos do que um dia pensei que valia. Posso morrer à fome por causa da Liberdade. Mas saberei que a Liberdade fez surgir, diante de mim, todos os defeitos que os homens podem ter. Especialmente os políticos. Por essa percepção superior, por esse maior conhecimento do Outro e de mim próprio, esta gratidão à Liberdade. Uma gratidão com as cores, pálidas embora, do conhecimento ganho.

Crónica A RAZÃO DA GRATIDÃO - Magalhães Pinto - "VIDA ECONÓMICA" - 4/12/2005

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