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1.10.07

OS HERÓIS E O MEDO - 41º. fascículo

(continuação)

Foi o início duma via sacra sem passos nem fim. Usando todos os meios legalmente ao seu alcance, começou a tentar a libertação do filho. Insistia com a perseverança que era traço indelével do seu carácter. Dos seus superiores imediatos conseguia a compreensão. E a informação de que iam fazer subir na escala hierárquica as suas exposições. Mas alguns deles mostravam já algum enfado quando ele insistia. Nenhum queria expor-se num acto de solidariedade. Podia ser mal interpretado. A solidariedade de armas só valia enquanto não estavam em causa os dogmas. E os dogmas eram as ordens do "Velho". A prisão dos militares rendidos da Índia era um desses dogmas. De algum modo, o exemplo parecia frutificar pelo medo. Quando os acontecimentos dispararam em Angola, quando a ordem de avançar, sózinhos e em força, para ali se tornou pública, nem uma única voz discordante se ouviu. Ele fora um dos silenciosos. Dois anos de terror. Que de algum modo justificavam a atitude do "Velho". Abandonar as populações de Angola àquela horda de selvagens era carta de alforria para um bando de assassinos à solta. Dois anos no qual crescera a sua admiração pelas qualidades do seu povo. Aqueles homens simples e sem nome, tantos deles arrancados à pacatez duma vida escoada em aldeias desconhecidas, eram capazes dos maiores actos de heroísmo. Traziam neles a dimensão de um povo destinado a ser dono do mundo. Percebia agora, melhor do que antes, porque existira a saga de Quinhentos. Com homens de tão vasta coragem, de tão elevado espírito de sacrifício, com homens cuja alma era capaz de conter dentro de si a raiva e a generosidade, a ferocidade e a meiguice, o amor e o ódio, qualquer um podia ser Vasco da Gama. Pedira impossíveis e os seus homens tinham-no presenteado com autênticos milagres. Pedira esforço e os seus homens tinham-lhe oferecido a vida. Quase podia ver, ainda, na escuridão do quarto, músculos sem rosto a afastarem abatizes sem conta, atravessados na estrada por um inimigo fugidio, escondido, em fuga aparente, para surgirem, logo a seguir, num matagal qualquer, ali à frente. Os heróis do mar estavam de volta em terra, pensou. Mas não se lhes podia pedir que morressem. Sobretudo quando a superioridade do adversário era tão esmagadora como fora na Índia. Se ele lá estivesse, ter-se-ia rendido também. O seu espírito militar compreendia que as baixas só fazem sentido quando há um objectivo possível no ponto de mira. Sem esse objectivo possível, a resistência é estupidez, pensou. Não se podia pedir estupidez a homens capazes das heroicidades como as vira em Angola.

(continua)
Magalhães Pinto

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