(continuação)
Devia rondar os doze anos. O Álvaro costumava ajudar o senhor Nunes fazendo a entrega das mercearias aos clientes do bairro. Com isso, sempre arrecadava uns cinco escudos por semana, além de uma ou outra gorgeta, de tostões, que os clientes do senhor Nunes não eram ricos. Dinheiro pressurosamente entregue à mãe. Não era muito, mas sempre ajudava. Naquela semana, o Álvaro só acabou as entregas semanais no Domingo. Ainda a manhã ia jovem. E recebera os cinco escudos da praxe das mãos do senhor Nunes. Guardou-os, sentindo o calor reconfortante da moeda na mão enfiada no bolso, a destacar-se da meia dúzia de moedas mais pequenas. E, antes de ir para casa, fora à missa, como era seu uso. Nas suas preces meio arredondadas, sempre pedia a Deus auxílio para a vida de sacrifício levada pela mãe e um pouco de luz para o irmão. Nunca pedira nada para si. Naquele dia, a homilia do padre tocara a sua alma de miúdo antecipadamente feito homem. As crianças abadonadas, disso falara ele. Indefesas. Perdidas no meio dos adultos sem esperança nem afeição. A dormir as mais das vezes ao relento. Para ajudar tais crianças seriam as oferendas dessa missa. Na imaginação de Álvaro perpassavam imagens de gente como o irmão atiradas para a montureira da vida. Do altar, por ali abaixo, vinha o sacristão com o saco vermelho das esmolas pendurado de um longo cabo, tampa metálica reluzente a cobri-lo numa certificação de segredo sobre o óbulo de cada um. Estendia-o à direita e à esquerda, a recolher as ofertas. Álvaro tinha ainda a mão no bolso onde guardava a sua pequena fortuna. Sentiu a moeda maior queimar-lhe os dedos. Num impulso, quando o sacristão passava por si, tirou a mão do bolso, trazendo consigo a moeda. E depositou-a na ranhura da tampa brilhante. Até ao fim da missa, uma certa alegria pelo que fizera casava-se com um vago sentimento de arrependimento. Ia chegar a casa sem dinheiro, nessa semana. Mas as crianças, todas aquelas crianças de que falara o padre, essas ficariam mais alegres, seguramente. Deus havia de ajudá-lo nas gorgetas da semana seguinte, pensou. Saiu da igreja. No caminho para casa, no muro da esquina que dava início à sua rua, havia um pequeno retábulo, umas "alminhas", dedicado a Nossa Senhora da Conceição. Álvaro costumava deter-se sempre alguns momentos ali, admirando o ar angélico da Senhora, com crianças a seus pés e uma nos braços, olhos revirados a olhar o céu, certamente a implorar para elas a protecção divina. Nesse dia, Álvaro deteve-se um pouco mais. Curiosamente, não se pensava abrangido pela prece da Senhora. Crianças eram os outros. Refez uma prece e retomou o caminho. Não mais de dois passos. A seus pés, uma moeda reluzia, reflectindo os raios de sol que nela incidiam. Álvaro baixou-se e apanhou-a. Olhou em redor para ver se alguém procurava a moeda. Não havia ninguém na vizinhança. Abriu a mão. A moeda, de cinco escudos, novinha em folha, continuava a brilhar. Álvaro guardou-a no bolso, bem agarrada, e foi para casa, pulando quase tão alto como o coração dentro de si.
(continua)
Magalhães Pinto
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