(continuação)
Álvaro recebeu a notícia da mobilização com serenidade. Subitamente, o seu rendimento passava a ter algum significado. Poderia deixar dois terços do vencimento de sargento na Metrópole. O que, junto à pensão de amparo, era mais do que alguma vez conseguira angariar. Ir para a guerra era um risco. Mas pelo menos era bem pago, admitia. E não havia de ser nada. Deus velaria para que nada lhe acontecesse. Isso mesmo repetiu à mãe, quando ela se mostrou preocupada com a sua ida para África. Ficou com a sensação de que nada do que dissera, o relativo desprendimento do anúncio feito, tinham conseguido tranquilizá-la. Deitou-se cedo, nessa noite. De entre o montão de arrumados à cabeceira, escolheu um do Pitigrilli. Um cínico e maluco filósofo italiano. Apreciava-o. Leu até tarde. Desde quando conseguira juntar as primeiras letras, os primeiros ditongos, as primeiras sílabas, o Álvaro tinha sempre um monte de livros à cabeceira. Na sua maior parte, emprestados. Um ou outro trazidos da bibliteca pública. O bibliotecário, o senhor Alves, conhecia-o, gostava do rapaz e condescendera nos empréstimos um pouco além do regulamentar, sem nunca se arrepender. Os livros voltavam depressa e tal e qual haviam sido emprestados. Foi mais longe, mesmo, e orientou as leituras do jovem. Álvaro apagou a luz e ficou acordado. A pensar se lhe valia a pena gozar as férias do ano, mais os dez dias da ordem, previstos nos regulamentos para mobilizados. A pressão do dinheiro desaparecera subitamente. Cada mobilizado tinha direito a ajudas de custo. A Pátria procurava abafar a dor da separação com alguns contos de reis. A dor para ele não era muita e as ajudas de custo deveriam chegar, à vontade, para dois meses de sobrevivência da mãe e do irmão. Adormeceu. Pacificamente. Já há muito tempo que não adormecia tão em paz. Nessa noite sonhou com os milhares de livros já lidos. Pareciam todos empurrá-lo em direcção a uma aurora feita de prata. Nem bem sabia se eram os livros a empurrá-lo ou ele a puxá-los. Mas iam todos juntos. A aurora fazia negaças. Por mais que voassem todos, estava sempre no horizonte. Já pelo fim do sonho, a aurora assumira a figura da escola onde, desde os dezasseis anos e sempre estudando à noite, procurava sair do pântano de pobreza onde havia nascido.
(continua)
Magalhães Pinto
Sem comentários:
Enviar um comentário