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17.10.07

OS HERÓIS E O MEDO - 57º. fascículo

(continuação)

No dia seguinte deu-se ao luxo de ir mais tarde para o quartel. Queria ir à companhia de seguros dar a notícia da sua mobilização. Ainda não há muito tempo lhes dever estar para breve o seu regresso. Tomou o autocarro para Cacilhas. Atravessou o rio no cacilheiro. Ia cheio. Álvaro deu por si a observar os demais passageiros. Alguns sós. Outros em grupo. Notava-se nestes últimos a familiariedade de quem era já companheiro de viagem há muito tempo. Os grupos só com homens discutiam audivelmente futebol. Talvez o Benfica conseguisse ser novamente campeão da Europa. As mulheres conversavam em voz baixa. Provavelmente, roendo a casaca de alguma em falta nesse dia. Curioso, notou Álvaro, as roupas eram todas tão escuras! Parecia que as mulheres de Portugal tinham perdido o gosto da garridice. Um par de raparigas mais novatas trauteava, em conjunto, um trecho dos Concha, muito em voga. Mas foram os passageiros solitários quem mais motivou a atenção de Álvaro. Em que pensariam? Alguns de entre eles deveriam ter familiares a combater nas colónias. Como se sentiriam? Rezariam, à noite por quem lá tinham, quem sabe nesse momento emboscado numa picada qualquer? Os seus rostos eram impenetráveis. Como se não tivessem sequer um pensamento. Toda a gente parecia vazia. O cacilheiro atracou, em manobra lenta. Alguns, provavelmente mais atrasados, tinham assegurado uma posição conveniente para serem os primeiros a sair. Álvaro deixou-se ficar para trás. Viu o barco a regurgitar a mole imensa de passageiros, como se fosse um longo e contínuo vómito. Alguns acotovelavam os que seguiam à sua frente, na ânsia de ganhar mais uns passos. A grande cidade, onde se decidiam os destinos de toda a juventude portuguesa, enchia-se paulatinamente. Para se esvaziar algumas horas mais tarde. A cena repetir-se-ia em sentido inverso. À noite, pensou Álvaro, a cidade devia ficar só com os governantes.

(continua)
Magalhães Pinto

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