OS HERÓIS E O MEDO - 61º. fascículo

(continuação)

O fado era a expressão possível dos desesperos num país em guerra. Era, simultâneamente, refúgio e desafio. Especialmente o cantado nas casas vadias, como aquela. No fado se concentravam as ousadias de que um povo inteiro era capaz. Fossem eles os desafios entre a Glória e a Rosa tendo o Zé por objectivo, fosem os desafios entre os fadistas, a ver qual o mais capaz de chorar com a voz. O próprio regime acentuava o desafio do fado, promovendo ora a Amália ora a Hermínia, ora o Farinha ora o Marceneiro. Havia quem dissesse estar no fado a alienação das consciências. Talvez fosse. Quando até as almas sentem o peso das grilhetas, o que fica é um grande fado, triste, choroso, dramático, voltado para dentro como se fora envergonhado de si mesmo. Para retornar ao exterior, transformado em gemidos de revolta. O Manel costumava cantar um fado, bastante apreciado, que resumia esse sentimento.

Quero viver
no espaço sereno
das minhas canções,

sorrindo,
como se cada som
fosse um dos meus desvelos...

Cheiro a feno
em manhã de Primavera...
Ilusões
de quem vive uma quimera...

Não!... Minto!...
Estas notas são o grito
duma alma acorrentada...
Instinto
que me faz ficar aflito
quando estou cheio de nada...
Numa ansiedade
escorrendo dos meus dedos...
Na verdade,
feita de sonhos e medos...

Quero viver
no calor da esperança
de sois musicais,

sorrindo,
como se cada sol
fosse um dos meus desejos...

Uma dança...
Uma flor... uma andorinha...
Muito mais!...
Uma canção feita minha...

Não!... Minto!...
Estas notas são o grito
duma alma acorrentada...
Instinto
que me faz ficar aflito
quando estou cheio de nada...
Numa ansiedade
escorrendo dos meus dedos...
Na verdade,
feita de sonhos e medos...

Quero viver
nas rimas forçadas
dum riso esquecido,
perdido
em palavras inventadas...

Quero viver
no riso forçado
de rimas perdidas...
O fado
destas minhas duas vidas...

(continua)
Magalhães Pinto