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27.11.07

OS HERÓIS E O MEDO - 99º. fascículo

(continuação)

XIII

Quando António Soveral chegou a casa, para se despedir da família antes de embarcar, encontrou nela já o filho Ricardo, libertado, nesse dia, da ignominiosa detenção, por cobardia diziam as ordens de prisão. Desmoralizado. Quase envergonhado falta que não cometera. A Índia Portuguesa, como ainda se lhe chamava, estava perdida. Mas não os seus efeitos no espírito de todos quantos tinham vivido os últimos momentos da multicentenária aventura. António Soveral ouviu da boca do filho a verdadeira história dos momentos finais. O avanço dos soldados indianos, incontáveis como um bando de pardais ao fim do dia. O inicial estupor dos oficiais e dos subordinados. A tentativa de resistência de alguns, logo impedidos por outros na tomada de iniciativa. A luta lá em baixo, no porto de Goa, com uma fragata minúscula a querer fazer frente a bem armados navios de guerra indianos. As ordens chegadas, vindas de Vassalo e Silva, dizia-se, para não oferecer resistência. A incompreensão de alguns oficiais. Uma incompreensão que apenas nos longos diálogos do campo de prisioneiros se haveria de desfazer. Teria sido, realmente, um suicídio colectivo oferecer qualquer resistência. A Pátria lá longe, com apoio logístico a mais de um mês de distância. O confronto entre as velhas Mäuser e armas automáticas recentes. A desproporção do número. Quem mandava nem imaginava, sequer, o quanto ficava a dever à rendição o facto de não ficar agarrada às páginas da História como assassino impiedoso, comentara Ricardo. As longas horas, dias, meses, no campo de prisioneiros, na União Indiana. Onde, apesar do tratamento relativamente humano, nada compensava aquela sensação de abandono a que pareciam votados. Diziam os indianos esperar apenas uma atitude de Lisboa para os fazer regressar ao seu país. Mas Lisboa parecia muda. Ainda sob o choque da perda da primeira parcela do império. Vão seguir-se todas as outras, augurava Ricardo. Pelo menos, a Pátria não podia contar mais com ele. Ia pedir a demissão do Exército.

(continua)
Magalhães Pinto

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