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13.11.07

OS HERÓIS E O MEDO - 84º. fascículo

(continuação)

Essa subtileza do uso do nós e do vós, meu comandante, é genial. Louros para vós, deveres para nós. Basta ver o semblante dos rapazes. Ordene-lhes que morram e eles morrerão, meu comandante. Bravos, leais e fiéis. Morrerão com bravura. Morrerão com lealdade. Morrerão com fidelidade. Eles nem adivinham ainda ao que vão, meu comandante. Mas, mesmo adivinhando, duvido que se recusassem a ir. Viva a bravura. Viva a lealdade. Viva a fidelidade. A Pátria precisa. A Pátria será servida. Onde raio estará a Pátria? Quem será a Pátria? Juro que, se a vir, a servirei. Devo estar cego. Dizem que a Pátria é grande como o mundo e eu não a vejo. O solo? Mas o solo é só de alguns. As casas? Mas, se for, porque é que a Pátria não é igual para toda a gente? A língua? É verdade que gosto da minha língua, que ela é bonita, preciosa. Mas porque será que fico danado quando alguém fala outra língua e eu não o entendo? A História? A avaliar pelas suas palavras, meu comandante, parece ser. Eu não estive em Ourique, eu não estive em Aljubarrota, meu comandante. Mas ainda posso entender isso. Agora, o meu lugar de combatente será em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques. Porquê lá, meu comandante? Os americanos e os russos andam no espaço, meu comandante. Faz isso dele, do espaço, sua pátria também? E porque é que eu vou matar gente que pensa ser lá, em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques, a sua pátria, não a minha? Sabe que mais, meu comandante? Estes homens na sua frente não são propriamente estúpidos. Embora haja alguns cheios de ingenuidade. E, todavia, aceitam o seu discurso sem pestanejar. Alguns estão mesmo de olhos arregalados. Nunca tinham ouvido falar assim. Acho que começa aí a sua heroicidade. Aceitar, sem discutir, argumentos discutíveis. Não por estupidez. Mas porque o seu conceito de dever para com a Pátria tem perfume medieval. Não houve ventos da História a alterar-lhes o odor.

(continua)
Magalhães Pinto

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