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2.3.11

MEMÓRIA

OS HERÓIS E O MEDO

Eu sei que quando Durão Barroso, Primeiro Ministro de Portugal por vontade dos Portugueses, fala, faz História. Junto ao que ele diz, as minha notas semanais, aqui, não passam de balelas, logo esquecidas no momento em que o jornal se junta às coisas velhas. Por isso, é que, quando fala, o Primeiro Ministro deste país que ainda somos deve ter muito cuidado. Muito mais do que eu. Particularmente, quando fala investido no papel de representação de todos nós. Eu falo em meu nome. Humildemente. Sabendo que aquilo que disser só a mim responsabiliza. Em certas circunstâncias - como ainda agora aconteceu em Angola - o Primeiro Ministro fala em nome dos Portugueses. Responsabiliza-nos, a todos nós. O que nos impõe dizer alguma coisa quando aquilo que diz não corresponde ao nosso sentimento. E temos obrigação de falar, em tais circunstâncias. Para que não fique para a História qualquer coisa dita pelo Primeiro Ministro que nos ofenda. Pelo menos, sem um vigoroso protesto nosso. Não adiantará muito, o protesto. Mas, pelo menos, ficará recolhido na imperecível palavra escrita disponível para os futuros historiadores deste tempo tão conturbado.

Vem isto a propósito da homenagem feita pelo Primeiro Ministro, no Parlamento angolano, "a todos os que lutaram pela independência de Angola". Particularmente aos guerrilheiros que defrontaram o exército português. Porventura, algo imposto pelas necessidades diplomáticas, o que Durão Barroso disse. Mas que feriu toda uma geração que passou pela guerra colonial. Porque nunca tal veemência lhe foi ouvida a propósito dos heróis portugueses. E teria sido tão fácil ao Primeiro Ministro, nessa precisa circunstância, exaltar a dignidade dos militares portugueses também, que não a dignidade da guerra. Face ao dito pelo Primeiro Ministro, recordei a homenagem - essa sim, homenagem - que recebi de um negro, empregado de restaurante em Maputo, quando, sete anos depois do fim da guerra, me perguntou e aos que me acompanhavam: "desculpem, vocês são portugueses ou estrangeiros?". É para deixar o contraponto que, julgo, a atitude do Primeiro Ministro merece que lhe peço desculpa, meu Caro Leitor, para abandonar por momento as economias e falar dos heróis portugueses da guerra colonial e do medo que sentiram.

Em 1513, um imortal autor italiano, Nicolau Maquiavel, publicou uma obra - "O Príncipe" - na qual dava preciosas indicações sobre como dominar as terras conquistadas. Andavam os Portugueses,nessa altura, nas suas caravelas e naus, a descobrir e a dominar novas terras por esse mundo fora, apenas mal intuídas pelos europeus. Mas de pouco lhes valeu a obra do italiano. Quase cinco séculos mais tarde, envolver-se-ão aí, em duras guerras, durante quase década e meia. Não tinha chegado meio milénio para conquistar a alma das gentes encontradas pelas Descobertas. Nessas guerras, sacrificou-se uma geração inteira, em nome de um conceito de Pátria que, por mais defeituoso fosse, continha os ingredientes essenciais de qualquer conceito de Pátria: amor ao território, amor às gentes, amor à língua, amor às tradições, veneração dos antepassados e da sua obra.

Para o esforço desse mais de um milhão de Portugueses passado por África nas guerras coloniais, não importa se o tempo, neste canto da Europa, era de ditadura ou democracia. O que verdadeiramente deve estar em perspectiva é o seu denodado sacrifício. Levado a cabo do jeito sempre usado pelos Portugueses. Com benevolência, com compreensão. Ainda nessas guerras esteve presente o espírito produtor da miscigenação. Os soldados portugueses demandantes de África na segunda metade do Século XX tiveram, com as populações nativas, de um modo geral, sublinho, um comportamento nada condizente com um ambiente de guerra. Houve mortos, feridos, estropiados, é verdade. De parte a parte. Houve, aqui e além, uma atrocidade, é verdade. De parte a parte. Mas, escoados os primeiros momentos de terror e pânico - quando as atrocidades foram mais visíveis - não foi esse o tom geral da guerra. Esteve sempre presente, pelo menos entre os soldados – hoje ditos de ocupação e, então, de defesa – e as populações civis, um clima de fraternidade. Sem prejuízo de uma ou outra excepção - isso mesmo, excepção - apenas os guerrilheiros capturados eram tratados com alguma impiedade, sobretudo durante interrogatórios de guerra. Mas, mesmo assim, sempre procuraram os militares portugueses “recuperar” os prisioneiros. Muitos deles, depois de se terem batido no mato contra os brancos – o racismo, quando existia, tinha dois sentidos – perderam posteriormente a sua vida ou a sua integridade física nas milícias que, ao lado daqueles, combatiam os guerrilheiros da independência.

As notas que hoje aqui deixo, correspondem a uma profunda necessidade espiritual. Surgida particularmente após a revolução de Abril, ponto final das referidas guerras. Foi doloroso – não tanto pelo autor ele próprio, que viveu a guerra mais como observador do que como participante – assistir ao vilipêndio caído sobre os seus antigos camaradas de armas. De repente, pareciam eles ter sido traidores da Pátria, enquanto os heróis chegavam de Argel, de Londres ou de Paris. Estes, os arautos duma justa liberdade cívica, alguns deles heróis também, mas de uma outra guerra, decidiram estender, sobre uma geração inteira, um manto de vergonha totalmente injustificado face ao seu comportamento. Não reparando que, com isso, estavam a insultar impiedosamente não apenas os militares expedicionários, mas também as suas famílias, as suas mães, os seus pais, as suas mulheres e, sobretudo, os seus filhos. Com um aflitivo impudor, os fugitivos da guerra colonial não pestanejaram, sequer, ao sepultar de novo, na tumba do esquecimento, os cerca de dez mil mortos portugueses provocados pela guerra colonial. Mortos aos quais, quer os novos arautos queiram ou não queiram, a Pátria deve o sacrifício supremo, esforçado, generoso, das suas vidas.

Mas há mais. Aos homens que fizeram a Guerra Colonial foram pedidos sacrifícios incontáveis. Mal preparados, mal equipados, mal alimentados, mal alojados, com uma logística militar apenas sofrível, esses homens disponibilizaram – para utilizar uma frase feita de bélico sabor – sangue, suor e lágrimas sem conta. Sofreram na pele as dores da metralha e no espírito o pavor do medo. Um medo que sempre sobrelevaram. Que dominaram. Para dele partirem para tantos actos de heroísmo, de fraternidade, de solidariedade. De uma solidariedade não esgotada no companheiro de armas e que, muitas vezes, tinha as populações locais por objecto. Fizeram-no sem esperar agradecimentos. Mas também não esperavam a ignomínia do labéu, a ofensa do esquecimento. Se foi possível, a Portugal, voltar a África e aos territórios libertados, escassa meia dúzia de anos depois do fim da guerra, a esses homens e ao seu comportamento se fica a dever. Muito mais do que ao labor dos políticos, os quais, de um modo geral, nada mais fizeram do que abandonar à sua sorte as populações que, apesar de tudo, os heróis portugueses defendiam.

Por tudo isso, para que os filhos e netos dos soldados que fizeram a Guerra Colonial saibam que os seus pais e avós foram heróis autênticos, amantes da Pátria, homens bons preocupados com os seus compatriotas, geralmente sem um átomo de racismo a toldar-lhes o espírito, aqui fica este protesto. Que fiquem a saber que eles, os seus pais e avós, tal como tantos outros feitores das mais belas páginas da nossa História, fazem jus à seguinte expressão, sem qualquer pudor, nesta circunstância, roubada aos lugares comuns da ditadura:

“Ditosa Pátria que tais filhos tem”.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 4.11.2003

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