Pesquisar neste blogue

3.3.11

CRÓNICA DA SEMANA

OS BRINQUEDOS

A Wikileaks deu a conhecer um telegrama do embaixador americano em Lisboa no qual, textualmente, se afirma que “Portugal compra brinquedos caros e inúteis”. Assim disse o “Expresso”. O jornal acrescentou ainda que “o Ministro da Defesa condena a divulgação pelo Expresso dos documentos confidenciais fundamentais para que os países assegurem a liberdade e a segurança”.

***

O programa de televisão “Plano Inclinado”, onde pontificavam os dois hiper-críticos da governação do país Mário Crespo, transmitido ao sábado à noite pelo canal SIC, foi suspenso sem explicações plausíveis.

***

Recordemos que o Jornal da Sexta, da TVI, conduzido por Manuela Moura Guedes, também muito crítico da governação e com papel de relevo na divulgação do caso FREEPORT – curioso! Onde pára este caso? – também foi suspenso, na circunstância com grande ruído público e sem que ficasse bem esclarecido o eventual papel nessa circunstância.

***

O director do diário “Público” José Manuel Fernandes também foi afastado na sequência de uma campanha noticiosa desfavorável para o Governo e para o Primeiro-Ministro, tendo ficado no ar a ideia de que tinha sido vítima de uma cilada informativa.

***

Ao longo do “reinado” de José Sócrates, foram surgindo notícias de dinheiros públicos gastos na contratação de agentes para intervenções nos media, tendo em vista melhorar a imagem dos governantes, notícias essas que também ficaram por esclarecer completamente.

***

Destes factos, apenas os mais salientes de uma história que, bem esmiuçada, nos levaria mais longe, retira-se uma conclusão. A Censura não desapareceu de Portugal com a Revolução dos Cravos. Apenas deixou de ser antecipada. Passou a ser postcipada. Os detentores do Poder entendem que só eles podem brincar. Por exemplo, a comprar submarinos, tanques, aviões e comboios. A contarem-nos anedotas todos os dias. A criarem modos de desbaratar o dinheiro dos nossos impostos. A fazerem contratos a fingir. A inventarem parcerias. A jogarem às escondidas com a real situação do país. A jogarem à cabra-cega connosco, num jogo em que quem tem os olhos vendados é sempre o Zé. A investir mais cegamente do que um touro de Salvaterra.

***

Que os governos sejam censores, tanto em ditadura como em “democracia”, não me espanta muito. Ser governante é ser administrador de uma empresa gigantesca, vendedora de um produto – a governação – com clientela assegurada. Para governar, os mercados não funcionam. Porque os administradores têm o poder de obrigar o cliente a comprar. Poder-se-á dizer que o mercado actua numa fase anterior, através de um processo chamado “eleição”. Mas há duas realidades que influenciam este processo, de modo determinante. Por um lado, o que se escolhe são os agentes de venda do produto. Não o produto propriamente, como seria curial quando a compra é obrigatória. Por outro lado, o processo é levado a cabo pelos accionistas da empresa, que somos todos nós, os chamados eleitores. E aqui vai-se verificar a perversão que conduz à existência da censura. É que o universo dos clientes da empresa é, simultaneamente, o dos seus accionistas. Numa empresa de direito comercial, os accionistas costumam estar-se nas tintas para a satisfação dos clientes, pelo menos até ao ponto em que isso afecta as vendas. E a administração da empresa pode facilmente enganar os accionistas, manipulando convenientemente os seus relatórios de gestão. Nesta empresa gigantesca chamada Estado, sendo os accionistas também clientes, apercebem-se facilmente do grau de satisfação destes últimos. Donde, a técnica de elaboração dos relatórios de gestão ter de ser substancialmente diferente. Enganar o cliente implica enganar o accionista e vice-versa, estando uns e outros, clientes e accionistas, pela confusão entre eles, de se aperceberem mais facilmente do engano. É por isso que ser político, isto é, administrador da tal empresa gigantesca, é muito difícil. E requer aptidões especiais.

Não obstante as dificuldades, surgem como administradores da empresa indivíduos que conseguem, durante algum tempo, enganar os dois universos, o dos clientes e o dos accionistas, não obstante estes dois universos teóricos serem apenas um na prática. Claro que não conseguem enganar todos ao mesmo tempo nem durante o tempo todo. E alguns, accionistas ou clientes, que conseguem vislumbrar a mentira, vêm por vezes gritar a mentira para a praça pública. É o momento para a censura actuar. Por isso não me admira que a censura nunca desapareça, seja em ditadura ou em “democracia”

O que já me espanta é que sejam clientes/accionistas – a que chamamos, por oposição, “privados” – a facilitar a existência da censura. A mesma censura que, mais tarde ou mais cedo, acabará por liquidá-los também. Suposto sendo que o não fazem por espírito de masoquismo, fica a imensa dúvida de saber porque é que o fazem. Confesso que busquei explicações. Não sendo parte directamente interessada, nem devendo – nem fazendo – tal ser em nome de superiores ideais, só encontrei uma. É o interesse pessoal que os move. Aliás, nas empresas comerciais, é sempre o interesse particular que as move. Mas se é assim, e se as atitudes de subserviência que adoptam em relação à grande empresa estatal é determinada pelo interesse, então a explicação só pode ser uma. É que a dita empresa também é cliente. Não já dos serviços ou produtos por ela própria fornecidos, mas pelos serviços ou produtos fornecidos pelas empresas “privadas”. E que cliente! Gigantesco, à medida do seu gigantismo. E, então, tudo fica explicado.

Mas daqui se extraem duas consequências de vulto. A primeira é a de que as brincadeiras dos governos só são possíveis com a colaboração de algumas potenciais vítimas de tais brincadeiras. De algum modo, é como se tais vítimas fossem os brinquedos de estimação da empresa gigante. E, por isso, por ela manipulados e brincados à vontade. E a segunda é que esta confusão entre accionistas e clientes, em conjunto com as regras que a administração, ela própria, ditou, não serve. É imperioso inventar outras regras. Talvez deixando de nos preocuparmos tanto com a administração e mais com o administrador. Fazendo com que cada grupo de clientes possa conhecer muito bem o administrador que, enquanto accionista, elege. O que exige a rápida existência da regionalização e dos círculos uninominais. Talvez assim, através de um diálogo directo entre clientes, accionistas e administrador se consiga que a mentira possa campear, exorcizando, por sua vez, esse monstro da vida colectiva que é a existência de censura. Antecipada ou postcipada, é igual.

Magalhães Pinto, em VIDA ECONÓMICA, em 3/3/2011

Sem comentários: