(continuação)
Todos nós mentimos alguma vez, Maria do Céu. Sempre pensei que a mentira faz parte da vida, como comer ou fornicar. Há quem minta por gosto e há quem minta por necessidade. Há quem minta por prazer e quem minta por amor. Há quem minta por preversão e quem minta sem saber que o faz. Quando, naquela noite no Borboleta, tive a certeza da tua mentira, fiquei a saber que pode haver quem minta como quem mata, em defesa, que nunca é legítima, ou por maldade. Não fui capaz de assumir como maldade a tua mentira do cinema. Mas fiquei perturbado, perdido, cabeça embriagada por pensamentos esparsos conduzindo a nenhum lado conhecido. Porquê por defesa?...
Uma rapariga, com cara de donut, boca grande em cara bolachuda, quedou-se perto de mim, sorriso convidativo, ainda meio amador e envergonhado, que se sumiu quando lhe varri o corpo com ar desinteressado. Sem mais aquelas, convidei-a para fornicar. Como se fosse uma ordem. Balbuciou um preço. Não entendi. Acompanhou-me à saída, passando pelo vestiário para pegar o casaco de fazenda, com uma vistosa gola de pele artificial.
Após escassos minutos de corrida, durante a qual nem falámos, o táxi deixou-nos à porta duma pensão, cujo nome a vermelho, meio safado no globo pendente sobre a porta, não fixei. Alguém invisível abriu o trinco, certamente puxando o cordel ensebado que vi, ao longo do corredor, mal entrei. Ao fundo, chegámos a uma saleta onde dois sofás de pergamóide, estilo americano, e um balcão em meia lua, imitavam pobremente uma recepção. Uma velhota, mal arranjada, cabelo arrepanhado na nuca à trouxe-mouxe, apareceu silenciosamente na saleta, deslizando nuns sapatos de quarto, de cor indefinida, com os restos duma orla de peluche a enfeitar. Presumiu não me ver, que a discrição é trunfo no negócio. Anunciou quanto nos custaria o quarto como quem exige o pagamento dum imposto. Paguei. Em troca, a rapariga recebeu um toalhete lavado e um sabonete minúsculo, enquanto a velhota, ao mesmo tempo que referia secamente um número, o do quarto, cumpriu o dever de informar que lá encontraríamos uma garrafa escura, na qual ainda devia haver permanganato.
(continua)
Magalhães Pinto
. . . OS SINAIS DO NOSSO TEMPO, NUM REGISTO DESPRETENSIOSO, BEM HUMORADO POR VEZES E SEMPRE CRÍTICO. . .
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30.4.07
MEMORIA
Para o corrente ano, o Governo instituiu um pagamento especial por conta do IRC que, a ser aplicado, conduzirá, seguramente, a uma de duas situações:
. ou, simplesmente, à recusa das empresas em pagá-lo, não tanto por vontade própria, mas sim por lhes ser impossível fazê-lo;
. ou, no caso de não quererem viver em regime de desrespeito fiscal, ao encerramento puro e simples.
Já tive ocasião de me exemplificar aqui com duas actividades em que o que o Governo pretende arrecadar com o dito pagamento corresponde à quase totalidade ou, pelo menos, a uma gordíssima fatia, da margem bruta com que esses negócios trabalham: as agências de viagem e os armazenistas da distribuição de tabaco. Mas poderia ser mais vasto. Há muitos negócios, particularmente comerciais, cujas margens BRUTAS de venda são inferiores a 10%. O que significa que, muitas delas, trabalham com margens líquidas - aquelas que devem ser efectivamente tributadas - inferiores a 3%, muitas vezes não chegando a 2%. Ao pretender arrecadar 1% das vendas em imposto, o Governo "nacionaliza" esses negócios, pondo-os a trabalhar para si. De "maior" sócio nos lucros, que já era, o Estado transformar-se-á, no caso de a medida legislativa ser implementada, em sócio "único". Apenas para os ganhos. Porque, para aos prejuízos, o Estado fará um manguito.
Porventura porque os gritos de socorro foram muitos e audíveis, o Governo decidiu adiar, por quatro meses, a aplicação da referida disposição fiscal. E, aparentemente, tal prazo destinava-se a corrigir a própria disposição, tendo em vista lutar contra a evasão fiscal sem cometer iniquidades maiores do que ela. Porém, o Ministro da Economia acaba de ter uma intervenção pública que reactivou todos os sinais vermelhos que o pagamento especial por conta do IRC para o corrente ano tinha acendido. Disse ele que o adiamento de quatro meses se destinava, cito, "a ajudar as empresas nesta conjuntura económica difícil". Expressão que faz presumir que, escoados os quatro meses, a medida será reposta tal como foi inicialmente concebida.
Esta presunção colhe, aliás, um reforço significativo quando é carreada para a opinião pública a informação de que a Comunidade Europeia, congratulando-se embora com o sucesso português na redução do défice orçamental em 2002, incentiva o Governo Português a impôr ainda mais sacrifícios.
É necessário que os empresários portugueses, sobretudo os pequenos e médios, não adormeçam sobre o adiamento. Porque, de repente, ver-se-ão confrontados com a necessidade de cumprir a nefanda disposição fiscal sem apelo nem agravo. É necessário manter a pressão e exigir do Governo a clarificação antecipada da referida disposição. Sem esperar pela última hora. As consquências de tal disposição serão extremamente graves para todos. É tempo de dizer ao Governo que não pode actuar apenas pelo lado da receita. E que, se é necessário encolher, que se encolha onde mais se pode esperar. Manter as empresas a funcionar, nesta conjuntura difícil de desemprego crescente, em que os pequenos empresários fazem milagres para manter as suas portas abertas, é mais importante do que ter submarinos ou aviões. Temos compromissos internacionais, é certo. Mas os nossos compromissos internacionais não podem sobrepor-se às nossas necessidades NACIONAIS.
O que acima deixo dito, sobretudo se acompanhado de uma firme atitude dos pequenos empresários, deve também constituir um sério aviso ao Governo. Se persistir na implementação do pagamento especial por conta do IRC, tal como está previsto, vai defrontar-se com uma situação muito grave. Todas as hipóteses são de possíveis:
. ou o desemprego aumentará seriamente, aprofundando a crise em que vivemos;
. ou as dívidas fiscais aumentarão incomensuravelmente;
. ou haverá mesmo uma revolta fiscal, atingindo não apenas o pagamento especial por conta, mas também outros impostos.
...
Excerto da crónica PREOCUPAÇÃO - Magalhães Pinto - "Vida Económica" - 23/2/2003
. ou, simplesmente, à recusa das empresas em pagá-lo, não tanto por vontade própria, mas sim por lhes ser impossível fazê-lo;
. ou, no caso de não quererem viver em regime de desrespeito fiscal, ao encerramento puro e simples.
Já tive ocasião de me exemplificar aqui com duas actividades em que o que o Governo pretende arrecadar com o dito pagamento corresponde à quase totalidade ou, pelo menos, a uma gordíssima fatia, da margem bruta com que esses negócios trabalham: as agências de viagem e os armazenistas da distribuição de tabaco. Mas poderia ser mais vasto. Há muitos negócios, particularmente comerciais, cujas margens BRUTAS de venda são inferiores a 10%. O que significa que, muitas delas, trabalham com margens líquidas - aquelas que devem ser efectivamente tributadas - inferiores a 3%, muitas vezes não chegando a 2%. Ao pretender arrecadar 1% das vendas em imposto, o Governo "nacionaliza" esses negócios, pondo-os a trabalhar para si. De "maior" sócio nos lucros, que já era, o Estado transformar-se-á, no caso de a medida legislativa ser implementada, em sócio "único". Apenas para os ganhos. Porque, para aos prejuízos, o Estado fará um manguito.
Porventura porque os gritos de socorro foram muitos e audíveis, o Governo decidiu adiar, por quatro meses, a aplicação da referida disposição fiscal. E, aparentemente, tal prazo destinava-se a corrigir a própria disposição, tendo em vista lutar contra a evasão fiscal sem cometer iniquidades maiores do que ela. Porém, o Ministro da Economia acaba de ter uma intervenção pública que reactivou todos os sinais vermelhos que o pagamento especial por conta do IRC para o corrente ano tinha acendido. Disse ele que o adiamento de quatro meses se destinava, cito, "a ajudar as empresas nesta conjuntura económica difícil". Expressão que faz presumir que, escoados os quatro meses, a medida será reposta tal como foi inicialmente concebida.
Esta presunção colhe, aliás, um reforço significativo quando é carreada para a opinião pública a informação de que a Comunidade Europeia, congratulando-se embora com o sucesso português na redução do défice orçamental em 2002, incentiva o Governo Português a impôr ainda mais sacrifícios.
É necessário que os empresários portugueses, sobretudo os pequenos e médios, não adormeçam sobre o adiamento. Porque, de repente, ver-se-ão confrontados com a necessidade de cumprir a nefanda disposição fiscal sem apelo nem agravo. É necessário manter a pressão e exigir do Governo a clarificação antecipada da referida disposição. Sem esperar pela última hora. As consquências de tal disposição serão extremamente graves para todos. É tempo de dizer ao Governo que não pode actuar apenas pelo lado da receita. E que, se é necessário encolher, que se encolha onde mais se pode esperar. Manter as empresas a funcionar, nesta conjuntura difícil de desemprego crescente, em que os pequenos empresários fazem milagres para manter as suas portas abertas, é mais importante do que ter submarinos ou aviões. Temos compromissos internacionais, é certo. Mas os nossos compromissos internacionais não podem sobrepor-se às nossas necessidades NACIONAIS.
O que acima deixo dito, sobretudo se acompanhado de uma firme atitude dos pequenos empresários, deve também constituir um sério aviso ao Governo. Se persistir na implementação do pagamento especial por conta do IRC, tal como está previsto, vai defrontar-se com uma situação muito grave. Todas as hipóteses são de possíveis:
. ou o desemprego aumentará seriamente, aprofundando a crise em que vivemos;
. ou as dívidas fiscais aumentarão incomensuravelmente;
. ou haverá mesmo uma revolta fiscal, atingindo não apenas o pagamento especial por conta, mas também outros impostos.
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Excerto da crónica PREOCUPAÇÃO - Magalhães Pinto - "Vida Económica" - 23/2/2003
PENSAMENTO DO DIA
FRASE DO DIA
"Proposta de lei do Governo (sobre o novo mapa judiciário) é irracional, ilógica e vai levar o caos aos tribunais."
António Martins - Presidente da Associação de Juízes - "Público" - 30/4/2007
***
E eu a pensar que o caos já estava instalado nos Tribunais... Estamos sempre a aprender...
(Imagem de pt.trekearth.com)
29.4.07
PENSAMENTO DO DIA
PERGUNTAS SEM RESPOSTA
A DUVIDA - 51º, fascículo
(continuação)
O mesmo ambiente de sempre. Talvez menos homens e mais mulheres do que quando era frequentador assíduo. A mesma estridência, a mesma cumplicidade, os mesmos jogos. Algumas caras conhecidas abriram-se-me num sorriso rasgado. Então ainda não tinha morrido? Há tanto tempo sem aparecer! Perguntei por Sueli. Ninguêm se lembrava de a ver, recentemente. E Zélia? Apontaram-me um recanto. Vistas dali, apenas duas silhuetas. Aproximei-me, deixando as duas silhuetas ganharem rostos de gente, a conversar animadamente. Uma delas, com barbas e de óculos, desconhecida. A outra, quando me reconheceu, teve um gesto de desculpa para o companheiro e chegou-se a mim, beijando-me nas duas faces. Que era feito de mim? Vinha para roubar outra, enfastiado já, ou vinha matar saudades? Perguntei por Sueli. Se esses eram os meus desejos, andava com azar! Há mais de um mês, Sueli estava por conta dum comerciante viúvo de Lisboa, por ali aparecido um dia e agarrado, como taínha esfomeada, pelo seu ar gaiato e alegria contagiante. Não tinha sido um mau negócio para a rapariga! Cama e mesa, num belo andar na capital, para os lados de Benfica, em troca duns rapapés ao velho que, pela aragem, nem de carruagem lá iria mais do que uma vez por semana. Mas que é isso, velhote?! Estás assim tão desejoso de Sueli? Escusas de ficar com esse ar, de Romeu enviuvado. Se não te sirvo eu, não te faltam para aí mulheres!
Deixei Zélia com uma desculpa qualquer e encostei-me ao balcão do bar, olhando maquinalmente em redor. Tantas Maria do Céu! Mexidas, apalpadas, abraçadas, empernadas! Tinham todas o rosto e o corpo de Maria do Céu! Não precisei de pedir. O empregado colocou o gin tónico à minha frente. Paguei distraidamente. De copo na mão, fui apoiar-me na divisória que separava a plataforma superior das mesas contíguas à pista de baile. Sentia-me esvaziado da dúvida, fora-se a tensão. Mentira. O que Maria do Céu me contara era mentira. E, face a isso, nem sequer a curiosidade de conhecer a verdade me assaltava, naquele momento.
(continua)
Magalhães Pinto
O mesmo ambiente de sempre. Talvez menos homens e mais mulheres do que quando era frequentador assíduo. A mesma estridência, a mesma cumplicidade, os mesmos jogos. Algumas caras conhecidas abriram-se-me num sorriso rasgado. Então ainda não tinha morrido? Há tanto tempo sem aparecer! Perguntei por Sueli. Ninguêm se lembrava de a ver, recentemente. E Zélia? Apontaram-me um recanto. Vistas dali, apenas duas silhuetas. Aproximei-me, deixando as duas silhuetas ganharem rostos de gente, a conversar animadamente. Uma delas, com barbas e de óculos, desconhecida. A outra, quando me reconheceu, teve um gesto de desculpa para o companheiro e chegou-se a mim, beijando-me nas duas faces. Que era feito de mim? Vinha para roubar outra, enfastiado já, ou vinha matar saudades? Perguntei por Sueli. Se esses eram os meus desejos, andava com azar! Há mais de um mês, Sueli estava por conta dum comerciante viúvo de Lisboa, por ali aparecido um dia e agarrado, como taínha esfomeada, pelo seu ar gaiato e alegria contagiante. Não tinha sido um mau negócio para a rapariga! Cama e mesa, num belo andar na capital, para os lados de Benfica, em troca duns rapapés ao velho que, pela aragem, nem de carruagem lá iria mais do que uma vez por semana. Mas que é isso, velhote?! Estás assim tão desejoso de Sueli? Escusas de ficar com esse ar, de Romeu enviuvado. Se não te sirvo eu, não te faltam para aí mulheres!
Deixei Zélia com uma desculpa qualquer e encostei-me ao balcão do bar, olhando maquinalmente em redor. Tantas Maria do Céu! Mexidas, apalpadas, abraçadas, empernadas! Tinham todas o rosto e o corpo de Maria do Céu! Não precisei de pedir. O empregado colocou o gin tónico à minha frente. Paguei distraidamente. De copo na mão, fui apoiar-me na divisória que separava a plataforma superior das mesas contíguas à pista de baile. Sentia-me esvaziado da dúvida, fora-se a tensão. Mentira. O que Maria do Céu me contara era mentira. E, face a isso, nem sequer a curiosidade de conhecer a verdade me assaltava, naquele momento.
(continua)
Magalhães Pinto
FRASE DO DIA
28.4.07
PERGUNTAS SEM RESPOSTA
INTERLUDIO
Uma intérprete pura - Cesaria Évora - e uma canção que toca as fímbrias da alma - SODADE - para um breve regresso a Cabo Verde...
PENSAMENTO DO DIA
O predador meteu a viola no saco. Perdeu a OPA sobre o BPI. Mas é um erro dizer que Paulo Teixeira Pinto foi derrotado. O verdadeiro mentor da OPA foi Jorge Jardim Gonçalves. Só quem não conhece os métodos de obediência da OPUS DEI poderá pensar outra coisa. Artur Santos Silva estava do outro lado e, mais do que Ulrich, foi ele o vencedor. Uma vitória atrasada. Já na OPA sobre o BPA, Santos Silva teve a vitória sobre Jardim ao alcance da mão, não fora o proteccionismo oferecido ao BCP por essa eminência parda que um dia, sem que se saiba porquê, foi Ministro das Finanças de Portugal: Eduardo Catroga.
FRASE DO DIA
A DUVIDA - 50º, fascículo
(continuação)
Às onze da noite, já estava eu no restaurante, em frente dum copo de cerveja intocado, para assistir à rendição do turno. Um a um, os empregados foram recusando a lembrança de qualquer par de senhoras que por lá tivesse estado, na véspera à noite. Se eu não sabia a mesa, o melhor era a minha mulher ir lá, podia tal avivar a recordação do empregado que a servira e, quem sabe, talvez até ele se lembrasse de quem ocupara, em seguida, a mesma mesa. Mas duas senhoras, sózinhas, à noite, a comer cachorros... Teríamos notado logo... A que horas foi? Não é costume vermos aqui senhoras sózinhas a essa hora! Só quando são aí da vida, a meter gasolina para fazerem mais uns quilómetros... Hihihi!... com o piri-piri que pomos nos cachorros, se calhar é alguma receita secreta para doçuras mais picantes... A alarvidade nem me preocupou, contra o meu costume. Só me interessava, exclusivamente, obcecadamente, confirmar a história de Maria do Céu. Não, decididamente, nenhum deles as tinha visto. E, além disso, a verdade é que não aparecera nenhum isqueiro.
Não fui logo para casa, nesse dia, Maria do Céu. Vagueei, perdido em mil conjecturas, por ruas que já nem lembro. Era para mim definitivamente assente teres-me mentido. Porquê? Para quê? Uma coisa eram os meus sentimentos, nessa altura ainda desconhecidos para ti, por não saber das tuas andanças. Outra coisa a tua relação comigo, gaiola de que tinhas a chave na tua mão, Maria do Céu. Para fazeres aquilo que muito bem te apetecesse, sem teres de dar-me explicações. Porquê, então? E sabes outra coisa? Embora sem o perceber na altura - só mais tarde se transformaria em grito - a minha inteligência violada rumorejava uma surda raiva, à medida que juntava as peças da tua história. Sueli, sózinha no cinema?! A última coisa a esperar dela! Sueli nunca estava só! Tu, a veres correr, durante perto de hora e meia, sem prestares atenção, as cenas duma história dramática, semelhante, por certo, a outras que tanto te atraíam? Impossível! E, ainda por cima, não estiveras no restaurante! Porquê a história inventada? Que poderias ter feito de tão grave para não ser contado, a mim, que te trouxera do "Borboleta"?
(continua)
Magalhães Pinto
Às onze da noite, já estava eu no restaurante, em frente dum copo de cerveja intocado, para assistir à rendição do turno. Um a um, os empregados foram recusando a lembrança de qualquer par de senhoras que por lá tivesse estado, na véspera à noite. Se eu não sabia a mesa, o melhor era a minha mulher ir lá, podia tal avivar a recordação do empregado que a servira e, quem sabe, talvez até ele se lembrasse de quem ocupara, em seguida, a mesma mesa. Mas duas senhoras, sózinhas, à noite, a comer cachorros... Teríamos notado logo... A que horas foi? Não é costume vermos aqui senhoras sózinhas a essa hora! Só quando são aí da vida, a meter gasolina para fazerem mais uns quilómetros... Hihihi!... com o piri-piri que pomos nos cachorros, se calhar é alguma receita secreta para doçuras mais picantes... A alarvidade nem me preocupou, contra o meu costume. Só me interessava, exclusivamente, obcecadamente, confirmar a história de Maria do Céu. Não, decididamente, nenhum deles as tinha visto. E, além disso, a verdade é que não aparecera nenhum isqueiro.
Não fui logo para casa, nesse dia, Maria do Céu. Vagueei, perdido em mil conjecturas, por ruas que já nem lembro. Era para mim definitivamente assente teres-me mentido. Porquê? Para quê? Uma coisa eram os meus sentimentos, nessa altura ainda desconhecidos para ti, por não saber das tuas andanças. Outra coisa a tua relação comigo, gaiola de que tinhas a chave na tua mão, Maria do Céu. Para fazeres aquilo que muito bem te apetecesse, sem teres de dar-me explicações. Porquê, então? E sabes outra coisa? Embora sem o perceber na altura - só mais tarde se transformaria em grito - a minha inteligência violada rumorejava uma surda raiva, à medida que juntava as peças da tua história. Sueli, sózinha no cinema?! A última coisa a esperar dela! Sueli nunca estava só! Tu, a veres correr, durante perto de hora e meia, sem prestares atenção, as cenas duma história dramática, semelhante, por certo, a outras que tanto te atraíam? Impossível! E, ainda por cima, não estiveras no restaurante! Porquê a história inventada? Que poderias ter feito de tão grave para não ser contado, a mim, que te trouxera do "Borboleta"?
(continua)
Magalhães Pinto
27.4.07
FRASE DO DIA
PENSAMENTO DO DIA
ARGUIDO:
adj.,
acusado;
delinquente;
s. m., Jur.,
aquele a quem acusam de algum delito;
sujeito submetido a um processo penal.
(dos dicionários)
Somos delinquentes crónicos. Todas as medidas, ademais medrosas, não passam de paliativos. São necessárias leis que:
- suspendam imediatamente das suas actividades públicas quem for declarado arguido;
- punam o Estado com indemnizações às vítimas quando a declaração de arguido for considerada infundada.
adj.,
acusado;
delinquente;
s. m., Jur.,
aquele a quem acusam de algum delito;
sujeito submetido a um processo penal.
(dos dicionários)
Somos delinquentes crónicos. Todas as medidas, ademais medrosas, não passam de paliativos. São necessárias leis que:
- suspendam imediatamente das suas actividades públicas quem for declarado arguido;
- punam o Estado com indemnizações às vítimas quando a declaração de arguido for considerada infundada.
A DUVIDA - 49º. fascículo
(continuação)
Após o almoço, telefonei para o jornal, prevenindo da minha chegada tardia. E fui à Regaleira. Por acaso não teria por ali aparecido um isqueiro, perdido pela minha mulher, na véspera, à noite, depois do cinema? Ela fora lá, acompanhada duma amiga... Não, não estava lá nada, disse o empregado do balcão, depois de remexer numa gaveta, pelos vistos a servir de secção de perdidos e achados. No entanto, o melhor seria eu voltar à noite, quando estivesse de serviço o turno que entrava às onze horas. Podia acontecer o isqueiro ter sido guardado por algum dos empregados. Se eu soubesse a mesa onde elas tinham estado... Não, não sabia. Bom, não faz mal. Venha cá logo. Estarão, com certeza, todos cá e encontrará aquele que as serviu. Garanto-lhe que se ficou aí, aparece. O pior é se alguém se sentou na mesma mesa antes do empregado a levantar. Sabe como é, agora já ninguém liga a ser sério, continuou ele, sem reparar na contradição das suas afirmações.
Fui incapaz de me concentrar no trabalho. Era tempo de mais, para a violência da dúvida a ganhar foros de certeza, esperar até à noite. Às malvas o desconforto e os riscos de perguntar a Sueli. Procurei na lista telefónica, a esmo, os apelidos mais vulgares, na esperança de encontrar alguém com o prenome de Sueli. Nem me lembrei, sequer, de que esse era um nome de guerra. Em vão. Liguei para a Zélia. Certamente tinha o número de telefone da amiga. O desabar duma montanha de telexes, em cima da secretária, despertou-me do estado de alheamento criado por longo tempo a ouvir o sinal de tocar, sem resposta. Mentalmente, ouvia e revia a história contada por Maria do Céu, tentando encontrar, nas minhas reminiscências de Sueli, comportamentos que justificassem a sua participacão nos acontecimentos da véspera, tal como Maria do Céu os descrevera.
(continua)
Magalhães Pinto
Após o almoço, telefonei para o jornal, prevenindo da minha chegada tardia. E fui à Regaleira. Por acaso não teria por ali aparecido um isqueiro, perdido pela minha mulher, na véspera, à noite, depois do cinema? Ela fora lá, acompanhada duma amiga... Não, não estava lá nada, disse o empregado do balcão, depois de remexer numa gaveta, pelos vistos a servir de secção de perdidos e achados. No entanto, o melhor seria eu voltar à noite, quando estivesse de serviço o turno que entrava às onze horas. Podia acontecer o isqueiro ter sido guardado por algum dos empregados. Se eu soubesse a mesa onde elas tinham estado... Não, não sabia. Bom, não faz mal. Venha cá logo. Estarão, com certeza, todos cá e encontrará aquele que as serviu. Garanto-lhe que se ficou aí, aparece. O pior é se alguém se sentou na mesma mesa antes do empregado a levantar. Sabe como é, agora já ninguém liga a ser sério, continuou ele, sem reparar na contradição das suas afirmações.
Fui incapaz de me concentrar no trabalho. Era tempo de mais, para a violência da dúvida a ganhar foros de certeza, esperar até à noite. Às malvas o desconforto e os riscos de perguntar a Sueli. Procurei na lista telefónica, a esmo, os apelidos mais vulgares, na esperança de encontrar alguém com o prenome de Sueli. Nem me lembrei, sequer, de que esse era um nome de guerra. Em vão. Liguei para a Zélia. Certamente tinha o número de telefone da amiga. O desabar duma montanha de telexes, em cima da secretária, despertou-me do estado de alheamento criado por longo tempo a ouvir o sinal de tocar, sem resposta. Mentalmente, ouvia e revia a história contada por Maria do Céu, tentando encontrar, nas minhas reminiscências de Sueli, comportamentos que justificassem a sua participacão nos acontecimentos da véspera, tal como Maria do Céu os descrevera.
(continua)
Magalhães Pinto
26.4.07
SUGESTÃO TURÍSTICA
PUERTO DE LA CRUZ (Tenerife)
PARA ESTUDANTES
Localizado na parte norte da ilha, Puerto de la Cruz é o principal centro turístico de Tenerife, acolhendo quase um milhão de turistas por ano.
Considerado um porto franco, Puerto de la Cruz é um paraíso para as compras, designadamente nos sectores da electr´+onica, fotografia, perfumes e bebidas. É todavia necessário muito cuidado para não se comprarem imitações das grandes marcas. Designadamente, podem mostrar-lhe o original mas, depois, embrulham uma imitação.
Uma das qualidades de Tenerife é a sua excelente cozinha, aliás razão do orgulhos dos profissionais do sector.
A vida nocturna é animada e propícia ao extravasar dos entusiasmos juvenis.
Como quase todas as cidades espanholas, Puerto de la Cruz també, tem a sua praça maior - Plaza del Charco - coração da cidade e ponto de encontro de todos os que demandam a cidade.
Para estudantes, em grupos e acomodação múltipla, há preços verdadeiramente excepcionais. Sete noites de hospedagem na Ilha, em meia pensão, incluindo a viagem de avião desde Portugal (ida e volta) pode custar a partir de 325,00 euros (mais taxas).
Gentileza de Viagens 747
PENSAMENTO DO DIA
FRASE DO DIA
"População de Valença abandona protestos (contra encerramento das urgências) e vira-se para os hospitais da Galiza."
Título de "Público" - 26/4/2007
***
Pouco a pouco, este Governo vai derrotando Nuno Álvares Pereira e os heróis de 1640, entregando Portugal à Espanha às prestações. Fico à espera de ver o que dirão os contribuintes espanhóis quando notarem que estão a pagar a saúde dos Portugueses...
PERGUNTAS SEM RESPOSTA
A DUVIDA - 48º, fascículo
(continuação)
Ainda em casa, aproveitando a ausência de Maria do Céu no quarto de banho, rebuscara-lhe a bolsa, à procura de meio bilhete dum cinema qualquer. Sobressaltado pela incorrecção do gesto e pela proximidade de Maria do Céu, de um momento para o outro a irromper na sala, a pesquisa fora imperfeita. Mas não tanto que me não desse a certeza de lá não estar. Nada de mal! Eu próprio, não me recordava de alguma vez ter guardado os bilhetes usados das sessões a que assistia. Porque havia Maria do Céu de guardar o seu, se não esperava vir a precisar dele? Saí, confundido com a sordidez da minha atitude, depois de um beijo que me soube a figueira. Sem paciência para esperar, comprei o meu jornal no primeiro quiosque, ao voltar da esquina. Fui direito à página de espectáculos. "Um Lugar ao Sol". Lá estava. No Rivoli. Por este lado, tudo certo. Nada mais natural do que, dali, dar um salto à Regaleira, ali a dois passos.
Imagina, Maria do Céu, cheguei a sentir remorsos da minha dúvida, mal vi o jornal. Um pequeno indício parecia tornar verdadeira a tua versão. Ah! Se eu fosse, então, um homem a quem bastasse um pequeno indício!... Teria passado o resto do dia tranquilo e, ao regressar a casa, à noite, ter-te-ia coberto de carinhos, no desejo de neles afogar os remorsos da dúvida injustificada. Mas não sou... não era. E esse haveria de ser, então, o meu mal, como em tantas vezes outras
(continua)
Magalhães Pinto
Ainda em casa, aproveitando a ausência de Maria do Céu no quarto de banho, rebuscara-lhe a bolsa, à procura de meio bilhete dum cinema qualquer. Sobressaltado pela incorrecção do gesto e pela proximidade de Maria do Céu, de um momento para o outro a irromper na sala, a pesquisa fora imperfeita. Mas não tanto que me não desse a certeza de lá não estar. Nada de mal! Eu próprio, não me recordava de alguma vez ter guardado os bilhetes usados das sessões a que assistia. Porque havia Maria do Céu de guardar o seu, se não esperava vir a precisar dele? Saí, confundido com a sordidez da minha atitude, depois de um beijo que me soube a figueira. Sem paciência para esperar, comprei o meu jornal no primeiro quiosque, ao voltar da esquina. Fui direito à página de espectáculos. "Um Lugar ao Sol". Lá estava. No Rivoli. Por este lado, tudo certo. Nada mais natural do que, dali, dar um salto à Regaleira, ali a dois passos.
Imagina, Maria do Céu, cheguei a sentir remorsos da minha dúvida, mal vi o jornal. Um pequeno indício parecia tornar verdadeira a tua versão. Ah! Se eu fosse, então, um homem a quem bastasse um pequeno indício!... Teria passado o resto do dia tranquilo e, ao regressar a casa, à noite, ter-te-ia coberto de carinhos, no desejo de neles afogar os remorsos da dúvida injustificada. Mas não sou... não era. E esse haveria de ser, então, o meu mal, como em tantas vezes outras
(continua)
Magalhães Pinto
SORRISO DO DIA
25.4.07
PENSAMENTO DO DIA
As Câmaras Municipais celebram o "25 de Abril" anunciando a criação de mais um imposto destinado ao financiamento da protecção civil. Como se os impostos que já pagamos não tivessem implícito a prestação desse serviço. Infelizmente, a isto estão reduzidas as ideias libertadoras de Abril: cobrar impostos, cada vez mais impostos.
MEMORIA
"É evidente que o que é necessário é, para já, iniciarmos conversações directas com os movimentos nacionalistas. E a propósito quero aproveitar essa oportunidade de mpoder ser ouvido por portugueses que se encontram em Angola e Moçambique para les dizer que devem manter a calma, que devem aceitar as soluções que precisam de ser encontradas na Metrópole e que não se devem deixar envolver em veleidades separatistas, que seriam uma tragédia para eles próprios e para os destinos da Pátria portuguesa. Portanto, penso que eles deverão estar calmos e ter confiança nas capacidades do povo português para encontrar uma solução pacífica para este conflito."
Mário Soares, em declarações à BBC, no dia 26 de Abril de 1974 - citado na edição do Jornal de Notícias de 27/4/1974
***
Dramaticamente irónico quando vemos, da distância, a obra de descolonização conduzida por ele próprio.
A DUVIDA - 47º. fasciculo
(continuação)
Deitamo-nos. Maria do Céu estranhou a minha falta de resposta aos seus apelos de amor. Pela primeira vez, isso acontecia. Sentia-me como se tivesse gonorreia. Impedido de responder. Mas o meu espírito, pleno de visões confusas dum filme esquisito, protagonizado por ela, não conseguia soltar-se o suficiente para a criação das condições necessárias.
Adormeci, já muito tarde, extremamente fatigado.
VIII
Nunca to disse, Maria do Céu. Mas, no dia seguinte, parecia um adolescente, em rodopio constante, roído pela dúvida, na tentativa, algo vã, de inventariar o traço dos teus passos na véspera, no labor cego e inútil de refazer o passado no presente. Esquecendo, involuntariamente, que este não é senão uma fronteira imaginária, constantemente definidora de um ponto móvel, sem regresso. Só há passado e futuro. Com a tal fronteira imaginária, a que chamamos presente, de permeio. Creio que eu não ter entendido isso, quando foi necessário, contribuiu para as nossas consumições. Estive sempre a tentar trazer o passado para o presente, ignorando que este não existe. E que, para o futuro, se não deve levar.
Não sei se devido às particulares condições do nosso relacionamento, se devido ao facto de te ter já por minha riqueza única, numa vida tão vazia, se, ainda, por ter mais pressentido do que sentido o encobrimento dos teus pensamentos no episódio do Vítor, começara a revolver-me numa avidez quase mórbida de conhecer os teus actos, os teus desejos, os teus pensamentos, a tua alma. Uma ânsia de confusão entre o meu ser e o teu, a permitir-me coexistir contigo, no que fazias, desejavas, pensavas e sentias. Avidez transformada em autêntica paranóia, em vício incontrolado, desde os acontecimentos da véspera.
(continua)
Magalhães Pinto
Deitamo-nos. Maria do Céu estranhou a minha falta de resposta aos seus apelos de amor. Pela primeira vez, isso acontecia. Sentia-me como se tivesse gonorreia. Impedido de responder. Mas o meu espírito, pleno de visões confusas dum filme esquisito, protagonizado por ela, não conseguia soltar-se o suficiente para a criação das condições necessárias.
Adormeci, já muito tarde, extremamente fatigado.
VIII
Nunca to disse, Maria do Céu. Mas, no dia seguinte, parecia um adolescente, em rodopio constante, roído pela dúvida, na tentativa, algo vã, de inventariar o traço dos teus passos na véspera, no labor cego e inútil de refazer o passado no presente. Esquecendo, involuntariamente, que este não é senão uma fronteira imaginária, constantemente definidora de um ponto móvel, sem regresso. Só há passado e futuro. Com a tal fronteira imaginária, a que chamamos presente, de permeio. Creio que eu não ter entendido isso, quando foi necessário, contribuiu para as nossas consumições. Estive sempre a tentar trazer o passado para o presente, ignorando que este não existe. E que, para o futuro, se não deve levar.
Não sei se devido às particulares condições do nosso relacionamento, se devido ao facto de te ter já por minha riqueza única, numa vida tão vazia, se, ainda, por ter mais pressentido do que sentido o encobrimento dos teus pensamentos no episódio do Vítor, começara a revolver-me numa avidez quase mórbida de conhecer os teus actos, os teus desejos, os teus pensamentos, a tua alma. Uma ânsia de confusão entre o meu ser e o teu, a permitir-me coexistir contigo, no que fazias, desejavas, pensavas e sentias. Avidez transformada em autêntica paranóia, em vício incontrolado, desde os acontecimentos da véspera.
(continua)
Magalhães Pinto
FRASE DO DIA
"Temos que deixar aos nossos jovens um país em que a vida se paute por valores éticos e de competência."
Cavaco Silva - Discurso de "25 de Abril" na AR - 25/4/2007
***
Ao contrário do habitual, não me apetece brincar com esta frase. Porque todos os dias temos notícia de estar a fazer precisamente o contrário.
PERGUNTA DO DIA
25 DE ABRIL
Este homem - SALGUEIRO MAIA - podia ter sido a primeira vítima da Revolução. No entanto, mais do que as armas empunhadas por outros na sua rectaguarda, foi a sua coragem que verdadeiramente derrotou a velha ordem. Muitas vezes penso nas ideias que percorreriam a sua mente naquele momento. A coragem raramente é mais do que a capacidade para resistir ao medo. E a dele, se também assim foi, foi infinita.
A ele, mais do que a qualquer outra personagemde de Abril, rendo a minha homenagem e entrego a minha gratidão.
24.4.07
PENSAMENTO DO DIA
A RESIN, empresa envolvida no caso Fátima Felgueiras, afirmou em tribunal que empolava os custos de investimento dos empreendimentos nos empreendimentos sanitários, embaratecendo os custos de funcionamento, para assim se conseguir maior comparticipação dos fundos comunitários. Verão que ainda assistiremos, em final de julgamento, à condecoração de Fátima, por roubar a Europa em favor de Portugal.
FRASE DO DIA
CRONICA DA SEMANA (II)
É um lugar comum, imensas vezes recorrido, dizer que, em política, o que parece é. A frase é atribuída a muitos autores, sendo que um dos que mais vezes tenho visto citado é Oliveira Salazar. Porventura, é uma das verdades mais confirmadas do universo de lugares comuns mais frequentes. Não entendo bem porque é assim, se não aceitar que a esmagadora maioria dos cidadãos é estúpida e tem a memória muito curta. Estupidez e memória curta que, se forem verdadeiras, redundam reiterada e pronunciadamente em desfavor do próprio cidadão. Veja-se, por exemplo, a recente polémica sobre a formação académica do Primeiro-Ministro. O conjunto dos cidadãos esteve dividido num punhado de grupos essenciais:
- os disponíveis para aceitar que tudo não passava duma tramóia destinada a abater José Sócrates;
- os, no outro extremo, preparados para não aceitar nenhuma dúvida sobre a verificação de falcatruas;
- e um terceiro grupo, muito menor, de bem-intencionados, procurando descobrir, na montanha de argumentos e acontecimentos contraditórios, onde estaria a verdade.
Desde o início se percebia que a verdade final não iria ser atingida. Eventualmente, porque não há uma verdade absolutamente visível ou, se há, ela tenha sido facilmente escamoteável. Mas tal entendimento não evitou que uma série imensa de argumentos de sentido contrário fossem jogados com o intuito de criar confusão. Uma confusão que servia a parte inverdadeira, qualquer que ela fosse. Veja-se que:
- se José Sócrates foi realmente beneficiário de favores que lhe facilitaram a obtenção de um grau académico a que não fez jus, o melhor era a confusão; os males cusados pela dúvida seriam sempre menores do que os de tal certeza; e a parte contrária foi imptente para encontrar uma tal verdade;
- se José Sócrates teve um caminho impoluto, o melhor para a parte contrária também era a dúvida; os males causados pela dúvida sempre seriam maiores dos que os de uma tal certeza; e José Sócrates foi impotente de produzir provas irrefutáveis da sua tese.
Isto é, o caso foi colocado na praça pública e, fosse qual fosse a realidade, sempre haveria uma das partes que combateria pelo aparente.
Um dos argumentos mais confrangedores colocados na opinião pública foi o de que, para se ser bom Primeiro-Ministro não é necessário ter uma formação superior. E confrangia tal argumento por duas razões:
- a primeira, é a de que realmente assim é se, não dispondo de uma formação superior, a pessoa que ocupa tal cargo é experiente de vida; isto é, é capaz de saber por onde encaminhar o país sem necessidade da cultura escolar e da capacidade teórica que esta atribui. Em todas as profissões há práticos que excedem os teóricos. No cargo de Primeiro-Ministro também pode estar um. Todavia, não é esse o caso de José Sócrates. Que se saiba, só foi político. Só andou nas guerras partidárias e parlamentares e, mesmo assim, não por tanto tempo como isso;
- a segunda é que, apesar ou acima do que disse antes, colocar a discussão nesse plano era um absurdo; O problema não tinha que ver com a compacidade profissional de José Sócrates para o cargo de Primeiro-Ministro; tinha a ver com a sua capacidade moral, ética, para o cargo; chamar à colação o plano técnico em desfavor do ético era, nitidamente, lançar o aparente no meio do real para tapar o sol.
É neste quadro que é muito difícil entender a posição do Senhor Presidente da República, ao tentar desvalorizar a polémica. Outro lugar comum muito utilizado é o de que "o Presidente é a reserva moral da Nação". Pois bem, porque é isso, tem o iniludível dever de procurar que sejam esclarecidas todas as dúvidas que se coloquem neste plano. Cavaco Silva não o fez. Conhecendo-o como conheço, procurei razões para que tivesse agido de tal modo. Confesso que apenas encontrei uma. A de, suspeitando de que podia haver tramóia no caso, ter percebido – como nós também percebemos - que os males causados a Portugal, sobretudo numa altura em que nos preparamos para presidir à União Europeia, seriam enormes. E o intérprete do supremo interesse nacional teria, assim, privilegiado também a confusão face ao esclarecimento. Teria privilegiado o aparente face ao real, temeroso dos males que a verdade podia causar.
...
Excerto da crónica O REAL E O APARENTE - Magalhães Pinto - "Vida Económica" - 25/4/2007
PERGUNTAS SEM RESPOSTA
A DUVIDA - 46º. fascículo
(continuação)
Quis saber mais pormenores. Então como ia o "Borboleta"? Zélia ainda parava por lá? Não estavam admiradas com o meu desaparecimento? Qual quê! Nem tinham falado nisso. Eu bem sabia que ela nunca tinha acamaradado com as outras e não ia, agora, pôr-se a falar daquele local detestado. Estivera a falar com Sueli porque, eu sabia como ela era, alegre e faladora que até dá gosto. Tinha querido saber tudo, como era o nosso relacionamento, porque se tinha deixado prender por mim, a razão do meu interesse por ela, se fazíamos a vida normal dum casal, se eu a tratava bem, se provia ao seu sustento, enfim, tagarela como era, não parara de fazer perguntas. Sim, durante a sessão e não obstante alguns "schius" incomodados. Mas, sobretudo, na Regaleira, enquanto comiam dois cachorros. Por isso se atrasara um pouco.
E Maria do Céu foi para a casa de banho, quase saltitando, que eram horas de dormir.
Quando vieste da casa de banho, Maria do Céu, eu estava - e estive ainda, por muito tempo - à janela, a espreitar o rio, onde a lua aproveitava a suave ondulação para desenhar fugidios e prateados peixes, miríades a aparecer e a desaparecer, num vertiginoso jogo de escondidas que me entontecia. Quanto mais voltas dava à tua história, mais me custava a encontrar-lhe a face, o fio, a ponta da verdade nela porventura existente. Por um lado, não atinava com a necessidade de me mentires. Afinal, eras livre, podias deixar-me e afastar-te, tão pronto o quisesses. Podias, se o desejasses, tranquilamente voltar à vida antiga ou, aproveitando a embalagem dada por mim, iniciares uma nova. Eu não teria meios de to impedir. Mas por outro lado, raio de história, tão cheia de coincidências e tão vazia de acontecimentos susceptíveis de a confirmar. Pensei encontrar-me com Sueli no dia seguinte. Mas não pude afastar o constrangimento de, qual colegial enciumado, ir tirar satisfações de terceiros que, ainda por cima, poderiam logo ir contar-te. Se fosse verdade, ia ficar terrivelmente envergonhado por ter suspeitado de ti. Se fosse mentira, ia ficar envergonhado por ter sido enganado. Não tinha saída! Só podia ficar com a minha dúvida! Passara a ter por companhia a minha incredulidade raivosa, a querer roubar certezas do silêncio!
(continua)
Magalhães Pinto
Quis saber mais pormenores. Então como ia o "Borboleta"? Zélia ainda parava por lá? Não estavam admiradas com o meu desaparecimento? Qual quê! Nem tinham falado nisso. Eu bem sabia que ela nunca tinha acamaradado com as outras e não ia, agora, pôr-se a falar daquele local detestado. Estivera a falar com Sueli porque, eu sabia como ela era, alegre e faladora que até dá gosto. Tinha querido saber tudo, como era o nosso relacionamento, porque se tinha deixado prender por mim, a razão do meu interesse por ela, se fazíamos a vida normal dum casal, se eu a tratava bem, se provia ao seu sustento, enfim, tagarela como era, não parara de fazer perguntas. Sim, durante a sessão e não obstante alguns "schius" incomodados. Mas, sobretudo, na Regaleira, enquanto comiam dois cachorros. Por isso se atrasara um pouco.
E Maria do Céu foi para a casa de banho, quase saltitando, que eram horas de dormir.
Quando vieste da casa de banho, Maria do Céu, eu estava - e estive ainda, por muito tempo - à janela, a espreitar o rio, onde a lua aproveitava a suave ondulação para desenhar fugidios e prateados peixes, miríades a aparecer e a desaparecer, num vertiginoso jogo de escondidas que me entontecia. Quanto mais voltas dava à tua história, mais me custava a encontrar-lhe a face, o fio, a ponta da verdade nela porventura existente. Por um lado, não atinava com a necessidade de me mentires. Afinal, eras livre, podias deixar-me e afastar-te, tão pronto o quisesses. Podias, se o desejasses, tranquilamente voltar à vida antiga ou, aproveitando a embalagem dada por mim, iniciares uma nova. Eu não teria meios de to impedir. Mas por outro lado, raio de história, tão cheia de coincidências e tão vazia de acontecimentos susceptíveis de a confirmar. Pensei encontrar-me com Sueli no dia seguinte. Mas não pude afastar o constrangimento de, qual colegial enciumado, ir tirar satisfações de terceiros que, ainda por cima, poderiam logo ir contar-te. Se fosse verdade, ia ficar terrivelmente envergonhado por ter suspeitado de ti. Se fosse mentira, ia ficar envergonhado por ter sido enganado. Não tinha saída! Só podia ficar com a minha dúvida! Passara a ter por companhia a minha incredulidade raivosa, a querer roubar certezas do silêncio!
(continua)
Magalhães Pinto
23.4.07
EDP, A GENEROSA
Enternecedor. Comovente. Exemplar. Acabei de ouvir na televisão. A EDP é a empresa campeã das preocupações com a vida familiar dos seus trabalhadores. Aos quais atribui diversos outros benefícios pouco ao alcance da generalidade dos trabalhadores. E eu sei como é conseguido esse milagre sem afectar o volume gigantesco dos lucros que, ano após ano, ouvimos anunciar. Vejam só.
Tenho um pequeno apartamento onde usava hospedar um trabalhador doméstico cá de casa. A partir do final de Janeiro deste ano, o apartamento ficou vazio. Durante oS meses de Fevereiro e Março últimos, nem viv'alma se passeou entre aquelas paredes. O quadro eléctrico ficou desligado. E chegou há pouco a factura da EDP relativa àqueles meses. Números redondos: TRINTA EUROS por dois meses em que a EDP não me prestou qualquer serviço, não me vendeu qualquer energia. Assim descriminados:
- POTÊNCIA CONTRATADA: 24,78 euros
Isto corresponde ao raciocínio de que eu posso não gastar energia, mas a EDP tem toda a sua infraestrutura montada para ma fornecer. Se a moda pega, não tarda eu estar a pagar uma taxa para o Metro do Porto. Eu não ando de Metro, mas o Metro tem as composições a circular para que eu anda. Ninguém me manda ser estúpido.
- TAXA DE EXPLORAÇÃO DGGE: 0,14 euros
Deve ser para pagar a um indivíduo qualquer que fiscaliza se a EDP me cobra o que deve ou não.
- IVA: 1,25 euros
Eu não consumi nada, eu não gastei nada, eu não contribuí nem com o mexer de um dedo para o Valor Acrescentado Nacional. Mas DEVIA! portanto, paga António.
- CONTRIBUIÇÃO AUDIO-VISUAL: 3,42 euros
A velhinha licença de rádio e televisão! Já pago na casa onde habito. Nesta, nem televisão tenho. Nem rádio tenho. Mas paga António! Ninguém te manda não gastares o que o Estado coloca à tua disposição. Quer queiras, quer não, és um consumidor compulsivo. E ademais, como é que a EDP podia ser tão generosa e ganhar estes prémios brilhantes se o não fosses, António?
Um desabafo apenas. Dêm-me permissão para "roubar" desta maneira e garanto-vos que não será EDP nenhuma a tirar-me o prémio do maior preocupado com a vida familiar de TODOS os trabalhadores portugueses!...
CRONICA DA SEMANA (I)
A propósito das celebrações da Revolução de Abril, a Junta de Freguesia de Matosinhos levou a cabo uma realização original e a todos os títulos meritória. Refiro-me aos painéis, de apreciáveis dimensões, que ornamentam as principais praças da freguesia, contendo as opiniões dos alunos de todas as escolas, escritas pela sua própria mão, sobre o dia libertador. Ao lado dos quais, uns postes servem, em quase todos os casos, de caule para cravos de variadas cores. Com predominância do encarnado, naturalmente. Num tempo em que surgem várias ameaças à liberdade de expressão, por obra e graça dos poderes que temos instalados no país, relembrar aos mais jovens que foi para que tivéssemos também essa liberdade que o "25 de Abril" se fez.
Dei-me ao prazer de ler alguns desses painéis. Para além de judiciosas observações, muitas das afirmações eram de uma ingenuidade despertadora de ternura. Mesmo a propósito do que acima digo, relembro o que um aluno escreveu: "Depois do "25 de Abril" podemos falar de política sem irmos presos". Mas outras afirmações me tocaram a alma. E recordo uma, escrita em letra bastante infantil, que dizia: "Eu tenho orgulho no dia 25 de Abril". Li e fiquei a pensar comigo o que levaria uma criança, nascida já tão longe daquela data, a dizer isso. A sentir isso, presumindo que não foi uma frase ditada por um qualquer professor. E não consigo entender linearmente. Tenho porventura que recorrer ao enunciado de valores ditos de Abril, que fazem parte do mesmo painel, para o entender. Entre os quais retive dois que são essenciais, numa sociedade moderna e civilizada: o respeito de uns pelos outros e a igualdade de oportunidades. Valores que, porventura, vivem bem lá no íntimo daquela criança. Mas que tão raramente se vêem por aí. Donde tenha concluído que, para que esta excelente iniciativa da Junta de Freguesia de Matosinhos seja realmente consequente, não se pode ficar por aqui. Haverá agora um trabalho enorme dos professores, no seu dia após dia com esta excelente matéria-prima, para gravar na alma dos seus alunos que os valores de Abril não podem ser apenas palavras. Talvez, se fizerem isso, as promessas do "25 de Abril" se venham a realizar, aí numa esquina qualquer do futuro. Porque até hoje, ainda não se viram cumpridas.
Excerto da Crónica ORGULHO - Magalhães Pinto - "Matosinhos Hoje" - 23/4/2007
PENSAMENTO DO DIA
FRASE DO DIA
A DUVIDA - 45º. fascículo
(continuação)
Eram quase duas horas quando Maria do Céu chegou. Um pouco afogueada, como quem vem de corrida. Meteu a chave na porta, abriu-a, entrou sem olhar para mim, fechou a porta à chave, saudou-me, tirou o casaco e arremessou-o para cima da cadeira na qual dormia já a minha gabardine. Foi beber um copo de água e veio anichar-se junto a mim. Admirada por eu ter chegado cedo. Cedo? Normalmente, eu chegava entre a meia-noite e a uma hora! Tarde tinha é acabado o filme! Pelos vistos, tinha sido o "Guerra e Paz" ou as "Aventuras do Zorro", com os episódios todos! Mordazmente, teci alguns comentários irónicos. Para ela não perder pitada do enredo, deviam ter passado o filme todo em câmara lenta. Quase cómico, obsceno, mimei um cowboy a sacar o revólver, a seis imagens por segundo, apontando o indicador estendido, como se fosse o cano, na direcção de Maria do Céu. Afinal não. Acontecera ter encontrado Sueli no cinema; enfadada e no período, Sueli escolhera exactamente aquele dia para se oferecer um merecido feriado. Quiz o acaso que ficasse mesmo na fila à sua frente e tivessem as duas optado, no primeiro intervalo, por duas cadeiras juntas, numa das coxias laterais. Acabaram por nem ver bem o filme, tal a curiosidade de Sueli em conhecer o acontecido, desde que deixara o "Borboleta".
Fitei Maria do Céu, bem no fundo dos seus olhos, tentando ler-lhe o pensamento, num esforço de concentração quase sobre-humano. Ela pareceu sentir-se atraída novamente pelo "Guernica". Descobriu-lhe não sei que mancha e foi lá, com a ponta do dedo, arranhá-lo suavemente, mas com minúcia. Se tinha gostado do filme? Tinha, embora acabasse por não lhe prestar muita atenção. "Um Lugar ao Sol", parece que é o título. A história dum homem, assassino da namorada pobre e resmungona, pelos vistos engravidada, para se casar com outra mais rica. Quase explodi, olhos arregalados, quando ela referiu a gravidez da heroína. Recordava-me os actos sexuais sem procriação. Gostar, gostar, só da cena do tribunal, com interpretações de fazer chorar. Apeteceu-me comentar que ela estava bem era para orientar a secção de cinema lá do jornal. Mas calei. Embora não acreditasse na história, a possibilidade de ser verdade fazia-me temer a ofensa duma expressão de dúvida injusta.
(continua)
Magalhães Pinto
Eram quase duas horas quando Maria do Céu chegou. Um pouco afogueada, como quem vem de corrida. Meteu a chave na porta, abriu-a, entrou sem olhar para mim, fechou a porta à chave, saudou-me, tirou o casaco e arremessou-o para cima da cadeira na qual dormia já a minha gabardine. Foi beber um copo de água e veio anichar-se junto a mim. Admirada por eu ter chegado cedo. Cedo? Normalmente, eu chegava entre a meia-noite e a uma hora! Tarde tinha é acabado o filme! Pelos vistos, tinha sido o "Guerra e Paz" ou as "Aventuras do Zorro", com os episódios todos! Mordazmente, teci alguns comentários irónicos. Para ela não perder pitada do enredo, deviam ter passado o filme todo em câmara lenta. Quase cómico, obsceno, mimei um cowboy a sacar o revólver, a seis imagens por segundo, apontando o indicador estendido, como se fosse o cano, na direcção de Maria do Céu. Afinal não. Acontecera ter encontrado Sueli no cinema; enfadada e no período, Sueli escolhera exactamente aquele dia para se oferecer um merecido feriado. Quiz o acaso que ficasse mesmo na fila à sua frente e tivessem as duas optado, no primeiro intervalo, por duas cadeiras juntas, numa das coxias laterais. Acabaram por nem ver bem o filme, tal a curiosidade de Sueli em conhecer o acontecido, desde que deixara o "Borboleta".
Fitei Maria do Céu, bem no fundo dos seus olhos, tentando ler-lhe o pensamento, num esforço de concentração quase sobre-humano. Ela pareceu sentir-se atraída novamente pelo "Guernica". Descobriu-lhe não sei que mancha e foi lá, com a ponta do dedo, arranhá-lo suavemente, mas com minúcia. Se tinha gostado do filme? Tinha, embora acabasse por não lhe prestar muita atenção. "Um Lugar ao Sol", parece que é o título. A história dum homem, assassino da namorada pobre e resmungona, pelos vistos engravidada, para se casar com outra mais rica. Quase explodi, olhos arregalados, quando ela referiu a gravidez da heroína. Recordava-me os actos sexuais sem procriação. Gostar, gostar, só da cena do tribunal, com interpretações de fazer chorar. Apeteceu-me comentar que ela estava bem era para orientar a secção de cinema lá do jornal. Mas calei. Embora não acreditasse na história, a possibilidade de ser verdade fazia-me temer a ofensa duma expressão de dúvida injusta.
(continua)
Magalhães Pinto
SORRISO DO DIA
22.4.07
A DUVIDA - 44º. fasciculo
(continuação)
As possibilidades de convivência eram, para Maria do Céu, praticamente nulas. Aparentemente, tinha abandonado o seu círculo anterior de relações. Por duas ou três vezes, eu deixara cair na conversa os nomes de Sueli e de Zélia. A sua reacção fora a de quem delas nada sabia há muito tempo. E também não era eu, com a minha vida solitária, a poder proporcionar-lhe a oportunidade de evasão no relacionamento com outras pessoas, susceptível de constituir o contraponto, o equilíbrio, para as suas longas horas de espera, apenas parcialmente compensadas pela minha companhia.
Depois veio aquela noite da ida ao cinema, Maria do Céu... Nessa noite, enquanto esperava por ti, inquieto, furioso pela tua ausência, preparando os argumentos de censura que haverias de me ouvir logo chegasses, uma réstea de compreensão para a tua atitude despontava em mim, penosamente acompanhada dum remorso ainda mal definido. Se bem me recordo, dei por mim a interrogar-me se a situação por ti vivida não resultava dum desejo meu de te guardar, só para mim e se, com tal atitude, eu não estaria, cruelmente, a sujeitar-te a um fadário ainda maior do que aquele ao qual almejava arrancar-te. Naquela noite, pela primeira vez, não soube destrinçar se o meu interesse por ti era altruísta ou egoísta, se eras o centro das minhas atenções ou o perímetro da minha vontade. Insensívelmente, não estaria eu a começar a agir e a reagir motivado pelos meus próprios desejos e ambições? Afinal, que raio de vida te estava eu a propiciar? Uma gaiola, donde não podias sair sem uma trela, firme e curta, a cingir-te a gola da alma? Uma montra fechada, de cortinas corridas, na qual, se bem que protegida das dedadas sebentas de mãos sujas passantes, só eu te podia ver e só a mim tu vislumbravas, fugidiamente, ao fim de todos os dias? Teria eu libertado o teu corpo para te acorrentar a alma? Serias tu mais feliz - ou menos infeliz - assim? Não sabia, então. Naquela noite, o meu entendimento perdia-se, encurralado, às voltas sobre si próprio, como cão endoidecido, açulado por uma ideia fixa, qual azorrague duro a estralejar-me nas fontes: eu chegara a casa e tu não estavas! E, embora me dissesses num papel, lido um milhão de vezes, que tinhas ido ao cinema, eu não sabia onde tu estavas. Isto é, eu não "via" onde tu estavas àquela hora. Nem como estavas. Nem com quem estavas. Nada. Só sabia que não estavas ali!
(continua)
Magalhães Pinto
As possibilidades de convivência eram, para Maria do Céu, praticamente nulas. Aparentemente, tinha abandonado o seu círculo anterior de relações. Por duas ou três vezes, eu deixara cair na conversa os nomes de Sueli e de Zélia. A sua reacção fora a de quem delas nada sabia há muito tempo. E também não era eu, com a minha vida solitária, a poder proporcionar-lhe a oportunidade de evasão no relacionamento com outras pessoas, susceptível de constituir o contraponto, o equilíbrio, para as suas longas horas de espera, apenas parcialmente compensadas pela minha companhia.
Depois veio aquela noite da ida ao cinema, Maria do Céu... Nessa noite, enquanto esperava por ti, inquieto, furioso pela tua ausência, preparando os argumentos de censura que haverias de me ouvir logo chegasses, uma réstea de compreensão para a tua atitude despontava em mim, penosamente acompanhada dum remorso ainda mal definido. Se bem me recordo, dei por mim a interrogar-me se a situação por ti vivida não resultava dum desejo meu de te guardar, só para mim e se, com tal atitude, eu não estaria, cruelmente, a sujeitar-te a um fadário ainda maior do que aquele ao qual almejava arrancar-te. Naquela noite, pela primeira vez, não soube destrinçar se o meu interesse por ti era altruísta ou egoísta, se eras o centro das minhas atenções ou o perímetro da minha vontade. Insensívelmente, não estaria eu a começar a agir e a reagir motivado pelos meus próprios desejos e ambições? Afinal, que raio de vida te estava eu a propiciar? Uma gaiola, donde não podias sair sem uma trela, firme e curta, a cingir-te a gola da alma? Uma montra fechada, de cortinas corridas, na qual, se bem que protegida das dedadas sebentas de mãos sujas passantes, só eu te podia ver e só a mim tu vislumbravas, fugidiamente, ao fim de todos os dias? Teria eu libertado o teu corpo para te acorrentar a alma? Serias tu mais feliz - ou menos infeliz - assim? Não sabia, então. Naquela noite, o meu entendimento perdia-se, encurralado, às voltas sobre si próprio, como cão endoidecido, açulado por uma ideia fixa, qual azorrague duro a estralejar-me nas fontes: eu chegara a casa e tu não estavas! E, embora me dissesses num papel, lido um milhão de vezes, que tinhas ido ao cinema, eu não sabia onde tu estavas. Isto é, eu não "via" onde tu estavas àquela hora. Nem como estavas. Nem com quem estavas. Nada. Só sabia que não estavas ali!
(continua)
Magalhães Pinto
PERGUNTAS SEM RESPOSTA
PENSAMENTO DO DIA
A penalização do enriquecimento ilícito dos políticos foi postergada pelos deputados do Partido Socialista, sob o argumento de que se não pode inverter o ónus da prova. Inversão que o Governo tem persistentemente levado a cabo em algumas áreas da governação. Por exemplo, no domínio fiscal.
(Imagem da Wikipedia)
FRASE DO DIA
21.4.07
INTERLUDIO
Do filme "The Bodyguard", a voz preciosa de Whitney Houston e a inesquecível canção I WILL ALLWAYS LOVE YOU...
PERGUNTAS SEM RESPOSTA
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