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17.4.07

CRONICA DA SEMANA (II)


Nenhum sexagenário, em bom estado de saúde mental, assalta um banco para se auto-sequestrar nele, fazendo ameaças inconsequentes, impossíveis de realizar, sabendo, como sabe, que o seu provável destino subsequente é a prisão. Para que tal aconteça, um tal homem tem que estar momentaneamente enlouquecido pelo desespero. Tem que tal ideia, absurda e condenada ao fracasso, lhe surgir como a última tentativa para impedir algo que considera trágico e irremediável.

Foi isso que aconteceu com um nosso concidadão, ali para os lados de Gaia, paredes meias com o Porto. Segundo o que foi publicado – e não corremos o risco de desmentido, porque os bancos são muito cuidadosos em passar para a opinião pública histórias dos seus clientes - trata-se de um comerciante a quem os negócios correm mal ultimamente e que deixou de pagar a prestação da casa onde vive e que adquiriu com financiamento bancário. Pode ser que a história não seja bem esta. Mas é nesta que temos que acreditar, à falta de fonte diferente dos vizinhos e conhecidos. Isto é, estamos na presença de alguém que não é rico e que parece ter na casa, apenas parcialmente paga, toda a riqueza acumulada de uma vida de trabalho. Deverá ao banco qualquer coisa como 70 mil euros de capital, a que acrescem mais cerca de 30 mil euros de juros. Segundo o próprio sexagenário, a razão maior do seu desespero foi devida ao facto de a casa ser hasteada com a base de licitação de 100 mil euros quando, segundo ele, valerá cerca de 300 mil euros.

Não importa aqui saber se o homem está a avaliar bem a casa ou não. O que importa é que ele pense que é assim. E nós sabemos como isto funciona. A dívida ao banco é daquele montante – 100 mil euros – e, portanto, o banco atribuiu-lhe esse valor base de licitação. Donde resulta a primeira nota estranha, dramática, cruel, por parte do banco. É que se está nas tintas para o que possa ser o prejuízo do seu cliente. O que quer é receber o seu. Se com a sua atitude vai conduzir à miséria uma vida de trabalho é algo que, nem por um momento, passa pela cabeça de quem decide no banco. Seria muito mais correcto e, sobretudo, muito mais humano que fosse o próprio banco a zelar pelos interesses do seu cliente, não oferecendo à praça um imóvel por valor inferior ao seu valor venal. Com mil milhões de macacos, como diria o Professor Mortimer, amigo de Timtim, o banco tem excelentes serviços de avaliação. Seguramente usou esses serviços quando decidiu financiar a compra da casa do homem. Nada. Os tempos agora já não são idílicos, os de quando quis fazer mais um negócio. Eu pagaria para saber qual foi, então, a avaliação do imóvel feita pelo banco. E não estranharia que fosse muito superior àquela pelo qual o leva agora à praça.

Julgo que todos os cidadãos, particularmente os mais jovens, devem atentar neste caso. Para dele retirarem a lição de que a publicidade dos bancos encerra mil armadilhas. A faca e o queijo estão sempre na mão dos bancos. Uma faca feita de aço frio e duro para um queijo que é sempre macio. Sobretudo, quando os clientes são os seus pequenos devedores. Muito raramente são apanhados em falso e, quando o são, é sempre por grandes clientes. Note-se que o banco com quem isto sucedeu é um que anda por aí, pelas televisões, a tentar convencer-nos de que basta ser seu cliente para se ser dono do banco. O Homem da nossa história aprendeu agora, à sua custa, como é que o dito banco trata os seus "donos". A publicidade dos bancos é mais enganadora do que a generalidade das publicidades. Não de um modo literal e objectivo. Mas subjectivamente, no afastamento que existe entre o modo amigável como nos tratam para nos conquistarem como clientes e na impiedade com que nos tratam quando, depois, precisamos deles.

...

Não sei o que vai acontecer ao homem de Gaia. Uma notícia destas estará esquecida ao fim de vinte e quatro horas. E só o homem ficará, a contas com a Justiça, no seu dramático fim de vida, pelo acto irreflectido, mas compreensível, que cometeu. A vida continuará. E a peça insensível e trituradora que é um banco continuará, feliz da vida, a massacrar-nos os ouvidos com slogans que pretendem afirmar que, com eles, o paraíso está à nossa espera. Desconfiem quando ouvirem tal.

Excerto da crónica ESTRANHOS TEMPOS - Magalhaes Pinto - "Vida Económica" - 2007-04-17

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