Pesquisar neste blogue

23.4.07

A DUVIDA - 45º. fascículo

(continuação)

Eram quase duas horas quando Maria do Céu chegou. Um pouco afogueada, como quem vem de corrida. Meteu a chave na porta, abriu-a, entrou sem olhar para mim, fechou a porta à chave, saudou-me, tirou o casaco e arremessou-o para cima da cadeira na qual dormia já a minha gabardine. Foi beber um copo de água e veio anichar-se junto a mim. Admirada por eu ter chegado cedo. Cedo? Normalmente, eu chegava entre a meia-noite e a uma hora! Tarde tinha é acabado o filme! Pelos vistos, tinha sido o "Guerra e Paz" ou as "Aventuras do Zorro", com os episódios todos! Mordazmente, teci alguns comentários irónicos. Para ela não perder pitada do enredo, deviam ter passado o filme todo em câmara lenta. Quase cómico, obsceno, mimei um cowboy a sacar o revólver, a seis imagens por segundo, apontando o indicador estendido, como se fosse o cano, na direcção de Maria do Céu. Afinal não. Acontecera ter encontrado Sueli no cinema; enfadada e no período, Sueli escolhera exactamente aquele dia para se oferecer um merecido feriado. Quiz o acaso que ficasse mesmo na fila à sua frente e tivessem as duas optado, no primeiro intervalo, por duas cadeiras juntas, numa das coxias laterais. Acabaram por nem ver bem o filme, tal a curiosidade de Sueli em conhecer o acontecido, desde que deixara o "Borboleta".

Fitei Maria do Céu, bem no fundo dos seus olhos, tentando ler-lhe o pensamento, num esforço de concentração quase sobre-humano. Ela pareceu sentir-se atraída novamente pelo "Guernica". Descobriu-lhe não sei que mancha e foi lá, com a ponta do dedo, arranhá-lo suavemente, mas com minúcia. Se tinha gostado do filme? Tinha, embora acabasse por não lhe prestar muita atenção. "Um Lugar ao Sol", parece que é o título. A história dum homem, assassino da namorada pobre e resmungona, pelos vistos engravidada, para se casar com outra mais rica. Quase explodi, olhos arregalados, quando ela referiu a gravidez da heroína. Recordava-me os actos sexuais sem procriação. Gostar, gostar, só da cena do tribunal, com interpretações de fazer chorar. Apeteceu-me comentar que ela estava bem era para orientar a secção de cinema lá do jornal. Mas calei. Embora não acreditasse na história, a possibilidade de ser verdade fazia-me temer a ofensa duma expressão de dúvida injusta.

(continua)
Magalhães Pinto

Sem comentários: