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21.4.07

A DUVIDA - 43º. fasciculo

(continuação)

Cinema, outra vez! Fui-me deixando encurralar, progressivamente, no desespero. Raio de mulher! Então não tinha a televisão e, depois desta acabar, não tinha o rádio, para se entreter? Liguei o rádio, distraidamente, mecanicamente, conduzido pela corrente dos meus pensamentos. O "botas" estava a dizer qualquer coisa sobre a guerra colonial. O tipo cada vez gostava menos da ONU! Não podia ser acusado de falta de coragem! Sózinho contra todos. Lá fora e cá dentro! Não liguei. De manhã, teria no jornal o discurso inteirinho. Sem comentários. Também, ninguém se atreveria a fazê-los, a não ser a Época ou o Diário da Manhã, ecos servis da voz do dono. Porque é que ela não me tinha dito que queria ir ao cinema? Eu tê-la-ia levado na minha noite de folga! Não me via ela, todos os dias, a voar para casa, findo o trabalho, na ânsia de estar próximo de si? Tinha ela alguma necessidade de sair, naquela quarta-feira, se sabia que no dia seguinte poderíamos ir os dois aonde quiséssemos?

A solidão de Maria do Céu apoquentava-me bastante, nos últimos tempos. De um modo geral, levantávamo-nos tarde, num lento e preguiçoso acordar que nos conduzia, sem pressas, à hora de almoçar, num dos acanhados restaurantes da Ribeira. Mesa reservada, no andar de cima, próxima do postigo debruçado sobre o rio. Dali, eu partia para o jornal e Maria do Céu ia para casa. Quase invariávelmente, respondia com um encolher de ombros à minha pergunta sobre como ia ocupar a tarde. Por vezes, acolhia com interesse as minhas sugestões - uma matiné na Batalha, a leitura dum livro na moda, uma volta por Santa Catarina - mas sem as usar. Tinha insistido bastante com ela para que frequentasse um curso de dactilografia ou que aprendesse a lidar com as cavilhas dos telefones. Poderia depois ensaiar uma formação em práticas de escritório, enveredando, assim, por uma carreira profissional que a tornasse independente. A cada recusa, eu ficava paredes meias com a tristeza e a alegria, entalado entre um vago sentimento de culpa, por não ser suficientemente teimoso, e a exultação da sua dependência, do meu agrado. De todo o modo, Maria do Céu parecia não ter planos para o futuro, limitando-se a deixar escorrer os dias pelo funil do tempo, como azeite virgem a cair do lagar.

(continua)
Magalhães Pinto

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