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30.4.07

A DUVIDA - 52º. fascículo

(continuação)

Todos nós mentimos alguma vez, Maria do Céu. Sempre pensei que a mentira faz parte da vida, como comer ou fornicar. Há quem minta por gosto e há quem minta por necessidade. Há quem minta por prazer e quem minta por amor. Há quem minta por preversão e quem minta sem saber que o faz. Quando, naquela noite no Borboleta, tive a certeza da tua mentira, fiquei a saber que pode haver quem minta como quem mata, em defesa, que nunca é legítima, ou por maldade. Não fui capaz de assumir como maldade a tua mentira do cinema. Mas fiquei perturbado, perdido, cabeça embriagada por pensamentos esparsos conduzindo a nenhum lado conhecido. Porquê por defesa?...


Uma rapariga, com cara de donut, boca grande em cara bolachuda, quedou-se perto de mim, sorriso convidativo, ainda meio amador e envergonhado, que se sumiu quando lhe varri o corpo com ar desinteressado. Sem mais aquelas, convidei-a para fornicar. Como se fosse uma ordem. Balbuciou um preço. Não entendi. Acompanhou-me à saída, passando pelo vestiário para pegar o casaco de fazenda, com uma vistosa gola de pele artificial.

Após escassos minutos de corrida, durante a qual nem falámos, o táxi deixou-nos à porta duma pensão, cujo nome a vermelho, meio safado no globo pendente sobre a porta, não fixei. Alguém invisível abriu o trinco, certamente puxando o cordel ensebado que vi, ao longo do corredor, mal entrei. Ao fundo, chegámos a uma saleta onde dois sofás de pergamóide, estilo americano, e um balcão em meia lua, imitavam pobremente uma recepção. Uma velhota, mal arranjada, cabelo arrepanhado na nuca à trouxe-mouxe, apareceu silenciosamente na saleta, deslizando nuns sapatos de quarto, de cor indefinida, com os restos duma orla de peluche a enfeitar. Presumiu não me ver, que a discrição é trunfo no negócio. Anunciou quanto nos custaria o quarto como quem exige o pagamento dum imposto. Paguei. Em troca, a rapariga recebeu um toalhete lavado e um sabonete minúsculo, enquanto a velhota, ao mesmo tempo que referia secamente um número, o do quarto, cumpriu o dever de informar que lá encontraríamos uma garrafa escura, na qual ainda devia haver permanganato.

(continua)
Magalhães Pinto

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