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20.4.07

A DUVIDA - 42º. fascículo

(continuação)

VII


Esmaguei energicamente o cigarro, acabado de acender, sobre a pilha de pontas amarfanhadas, esborrachadas, no cinzeiro. E escorracei dos pulmões, num sopro só, a última baforada de fumo. Chegara a casa, como habitualmente, cerca da meia-noite e não encontrara Maria do Céu. O meu sobressalto, no temor de algum mau acontecimento, desapareceu com a mensagem em cima da secretária, encostada à máquina de escrever. Aborrecida por estar só, fora ao cinema.

Vagueei pelo apartamento, sem objectivo definido, inquieto, irrequieto. Peguei em livros, que abri à sorte, para logo fechar, enfadado do amontoado de letras desfocadas em frases sem sentido. Sentei-me à máquina de escrever. Os dedos deslizaram sobre as teclas, como se fossem patinadores em dia de grande gala. Meia dúzia de linhas escritas sem exprimir uma ideia sequer. Curioso... Quando estava assim, desconcentrado da escrita, escrevia com os dedos todos, tal como me ensinara o velho mestre, no curso de dactilografia. Se me concentrava no que escrevia, usava só os indicadores. Bebi uma cerveja em dois longos tragos. Gostava imenso dele, daquele velho mestre! Meio corcovado pela idade, mechas de cabelo branco a furtarem-se, com rebeldia, à sujeição do chapéu, nem nas aulas se despedia da gabardine amarrotada e esfiapada nas mangas, quer fizesse sol ou chuva. Melhor dizendo, quer fizesse lua ou chuva, já que eu fizera os estudos todos à noite. E ficava engraçado quando respingava com os alunos se estes, distraídos, o tratavam por "se doutor". Nessas ocasiões, levantava o olhar por sobre as meias lunetas, tentando uma expressão de zangado, para ripostar. Doutor é um burro carregado de livros, menino! E eu só tenho carregado máquinas de escrever toda a vida! Use também o mindinho, menino! Não serve só para escarafunchar o nariz! Isso, para o cê de cedilha! Quando o menino calhava ser um homem já de barba na cara, que os havia assim nos cursos nocturnos, o diálogo ganhava tons de peça de teatro surrealista. Ou dum filme nova vaga.

(continua)
Magalhães Pinto

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