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18.4.07

A DUVIDA - 40º. fasciculo

(continuação)

Fiquei a vê-los dançar durante uma eternidade, enquanto conversavam animadamente, ou melhor, enquanto Vítor falava animadamente e Maria do Céu escutava com ar divertido, aqui e além pontilhado por um sorriso aberto, quase esboço de gargalhada. Vítor era assim! Conseguia tornar interessantes para qualquer as pequenas histórias banais que enchiam a sua vida de boémio! Ainda bem, pensava eu. Pela primeira vez Maria do Céu me parecia afastada do passado, presente fútil a ser vivido sem peias, mas alegremente. Ainda bem, pensava eu. E, não obstante, um ténue manto de tristeza, feito de retalhos de razão cozidos no que sentia, ensombrava-me esse pensar bem.


Creio, Maria do Céu, ter sido esse o momento em que o ciúme, ou a inveja, ou o despeito, desabrochou em mim. Nessa altura, mal soube identificar o sentimento impeditivo de viver a alegria visível em ti, no renascer da qual eu vinha pondo todo o meu esforço. Mas hoje, depois de tudo o vivido, vejo o facto comezinho de estares inocentemente nos braços de outro como uma agressão terrível ao sentimento de posse em mim nascente e que viria a tornar-se obsessivo. Ou talvez mais. Pela primeira vez desde o nosso encontro, via-te como algo exterior a mim, como um pedaço de mim, subitamente animado por um sopro divino ou demoníaco, a ganhar vida própria e a correr, independente e extasiado com a facilidade da passada, para bem longe de mim. E rodopiavas, rodopiavas, um, dois, três, rodopiavas, mostrando-me, alternadamente, o rosto e a nuca, luz e sombra a baterem em cheio nos meus olhos, como piscadelas intermitentes dum sinal de alarme. Nem por um instante, Maria do Céu, reparaste em mim! Parecia teres aberto, deliberadamente ou não, um largo parêntesis na mulher que eu conhecia, espaço onde não conseguia ler nada, não obstante o esforço posto nisso. A dado momento, não sei agora se foi ilusão ou se aconteceu realmente, ameaçaste cair. E Vítor apertou-te firmemente, de encontro a si, sobre ti meio curvado, olhos brilhantes, incendiados, numa atitude dominadora de predador depois de agarrada a presa. Foi só por um momento, fugaz, suspensão desfeita pela tua gargalhada. Mas foi um momento determinante para a minha insegurança... A partir daí, Maria do Céu, nunca mais te sentiria realmente minha, totalmente e exclusivamente minha.
(continua)
Magalhães Pinto

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