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19.4.07

A DUVIDA - 41º. fascículo

(continuação)

Regressámos a casa logo de seguida. Pretextei cansaço, argumento justificativo, também, do mutismo em que caí, obcecado por pressentimentos imprecisos. Verdade seja Maria do Céu não ter sido mais animadora. Olhos fitos num ponto indefinido para além do para-brisas do carro, parecia ter retomado o fio de vida brevemente interrompido. Deitámo-nos e, ao desejar-me uma boa noite, beijou-me do modo habitual, lábios semi-abertos com a língua a espreitar. Aconchegou-se a mim e adormeceu de seguida. De livro aberto na mão, numa leitura mecânica despida de apreensão, fiquei, por longo tempo, a rever, uma vez, outra vez, outra ainda, os acontecimentos dessa noite. Aqui e além, a imaginação pregava-me uma partida. A gargalhada de Maria do Céu era abafada, estrangulada na sua garganta, pelos lábios de Vítor a servirem de tampão, colados aos seus. Afastava a visão com desespero. Não, não tinha sido assim, para que é que me torturava?!... Voltava ao princípio. Só revisão, sem conclusão. Com uma angústia crescente a cada folha voltada. Adormeci, já muito tarde, cansado duma luz que, na escuridão, teimava em acender, ao ritmo dum martelo a percutir violentamente no meu cérebro, quase num cântico avassalador, luz... sombra... luz... sombra... luz... sombra...

Sabes, Maria do Céu? Se não fosse a nossa conversa da manhã seguinte, talvez aquela sensação dolorosa, ainda a magoar-me ao despertar, se tivesse esbatido e, com o tempo, tivesse desaparecido. Não sei se te lembras da nossa conversa. Tudo começou quando eu, a barbear-me ao espelho, aparentemente despreocupado e procurando disfarçar, num tom descuidado, a emoção embrulhada na minha voz, te perguntei o que achavas do Vítor. Qual Vítor?... Qual Vítor?... Aquele rapaz lá do jornal, que encontramos, ontem à noite, na discoteca! Vulgar?! Vulgar e divertiu-te daquele modo?! Desconhecia essa faceta da vulgaridade te divertir! Que te contou ele, de tão engraçado? Impossível!... Não era possível! Tu, a quem nem os mais espirituosos ditos conseguiam rasgar um sorriso, deixando entrever esses teus dentes de pérola, sem conheceres o motivo?! Tu, encarnação viva duma tragédia grega?! Tu, que fazias lembrar a ladaínha soturna das mulheres de pescadores, em noite de tempestade, na invocação de todas as santidades, tu não te lembravas da conversa que, vira-o com os meus olhos, te tinha posto a cantar como a água cristalina dum ribeiro da tua aldeia?! Os teus olhos furtivos, no espelho, borboletas irrequietas a fugir dos meus, como se estes fossem cardos, deixaram-me na dúvida da tua verdade. E a sensação dolorosa com que amanhecera, permaneceu, ainda mais viva, no meu peito...

(continua)

Magalhães Pinto

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