(continuação)
Vivi todo aquele tempo, Maria do Céu, com a consciência de estar a fazer algo que não devia. Um remorso pelo comportamento desleal. E o remorso, Maria do Céu, é muito semelhante à dúvida. Não te larga nunca, quando se instala. Quantas vezes, se o remorso existe, nos assalta o desejo de voltar atrás, de emendar o que está feito. Pobres tolos! Sem percebermos que uma vida é uma bala disparada por uma arma, quiçá num momento de amor, apenas detida pela morte. Bala que, em nenhum momento, voltará atrás um milímetro sequer. Numa trajectória apenas alterável por ela mesma. Mas o remorso torna-se ainda mais insuportável quando associado á dúvida, a qual te leva a, reconhecendo o mal feito, não teres desejo de voltar atrás. Nessa altura, o remorso amplifica-se, desdobra-se na teia dos gestos reconhecidamente indignos, mas indispensáveis, incontroláveis pela nossa vontade. E vigiar-te era indispensável para mim, Maria do Céu. Se não usasse o Marques, não encontraria modo de evitar perguntar-te, em cada dia, as andanças do teu tempo. Com a certeza da minha incredulidade, dissesses o que dissesses. Provavelmente, só acreditaria nas tuas mentiras. Os relatórios do Marques eram sempre tão iguais. Comecei a duvidar deles. Para veres o quanto esses dias foram de loucura, estive a ponto de contratar outro vigilante, para me assegurar se o Marques fazia bem o seu serviço. Hoje, o peso de consciência, meu tormento de então, começa a ser leve. Demais a mais, porque foi essa minha atitude a apressar as coisas e a liquidar a persistência dum drama terrível, dum inferno, a pesar sobre ti. Mas, naquela altura, foi um fardo difícil de suportar. Parecia trazer sobre os meus ombros o armazém de todos os pecados da humanidade...
Um dia aconteceu. Naquela sexta-feira, o Marques trouxe-me, finalmente, algo de novo. Maria do Céu entrara num prédio enorme de Gonçalo Cristóvão, ali mesmo a dois passos de mim, e tinha passado lá cerca de duas horas. Ele ainda pensara segui-la no interior do prédio, mas acabara por achar demasiado arriscado. Maria do Céu já tinha mostrado algum interesse por ele, lá no café da Rua de Ceuta. Tentando dominar o alvoroço, eu quiz saber pormenores. Nenhuma pista sobre o destino de Maria do Céu naquele prédio. Podiam ser dezenas de sítios. Já depois de terminada a vigilância daquele dia, e sabendo qual seria a minha atitude quando me desse conhecimento do sucedido, o Marques tinha ido ao prédio, lera atentamente as placas de identificação de alguns locatários, na busca de qualquer ligação possível entre elas e Maria do Céu. Desistira rapidamente, ao tomar consciência de que podiam ser todas e nenhuma. No prédio havia muitos mais apartamentos do que as placas expostas e, além disso, ele só conhecia de Maria do Céu o seu vai e vem.
(continua)
Magalhães Pinto
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