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17.6.07

A DUVIDA - 98º. fascículo

(continuação)

Anoiteceu mansamente no Mindelo. Um anoitecer de princípio de inverno. O vento norte, cortante, só apareceria lá mais para diante. Era o momento para abordar, com Maria do Céu, o estado actual da nossa relação intima. Sabes que te amo e és importante para mim? Claro que sabes! Não posso dispensar-te. É. É verdade que eu tenho este feitio, às vezes violento. Por meias palavras, cada vez mais ousadas, Maria do Céu foi-me dizendo como a assustava quando, com olhos penetrantes, autênticas brocas a perfurar a alma, a submetia a interrogatórios. A ponto de ou perder o fio do raciocínio e não ser capaz de me responder ou ter mesmo desejo de nada me dizer, com receio de que cada nova informação servisse apenas para eternizar o momento. Eu sei. É, talvez, demasiado querer saber tudo àcerca de ti. O que fazes, quando não estás comigo... por onde andas... os teus pensamentos, mesmo... Mas sempre foi assim. E, depois, acho ter sido esse meu interesse a evitar-te um destino nada invejável! Lembra-te, por favor, Maria do Céu... Sabes onde estavas a esta hora, se não fosse esse meu interesse?... Deixei Maria do Céu falar muito, o que ela ia fazendo, progressivamente mais corajosa. Aos poucos, a porta fechada em Paris ia abrindo uma frincha. Não forcei, não fosse fechá-la novamente. Via, nas suas frases, construídas um pouco a esmo, uma ânsia de liberdade profunda. Parecia ter saudades do tempo em que punha e dispunha dela mesma! Parecia uma jovem chegada à puberdade, arrebitada pelo entendimento de já poder escolher. Mas eu não quero ser nenhum paizinho para ti, Maria do Céu! Não quero senão proteger-te dos sobressaltos da vida. Ou não é verdade que uma mulher sózinha dificilmente se defende, por vezes? Deves saber isso muito bem! Pronto! Desculpa! Lá estou eu a falar no passado!...

Quando, naquela noite, recriamos o amor antigo, Maria do Céu tinha conseguido de mim o acordo para disfrutar duma maior liberdade. Poderia sair quando muito bem entendesse, sem o medo de ter que me dar explicações. Poderia fazer do seu tempo um espaço próprio, sem a necessidade de desenhar os seus contornos. Poderia mesmo tentar encontrar a ocupação dum trabalho. Aos poucos, eu fora cedendo em tudo isso, sem explicitamente ela mo ter pedido.

No dia seguinte, fui procurar um velho conhecido, do tempo em que era repórter dos casos de polícia. O Marques, agente da judiciária, então já reformado. Muitas vezes tinha apreciado a sua tenacidade na procura dos criminosos. Por mais pequenos que fossem os delitos. Contratei com ele seguir Maria do Céu nas suas deambulações e fazer-me todos os dias o respectivo relatório.

(continua)
Magalhães Pinto

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