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28.6.07

MEMORIA


Estou relativamente à vontade para escrever estas minhas notas de hoje. Tenho sido bastante severo – embora justificadamente, na minha opinião – para com os funcionários públicos. Designadamente para com os servidores da Administração Fiscal. Quando há poucas semanas aqui falei da prescrição de dívidas fiscais no valor de várias dezenas de milhão de contos, um deles comentava, amargamente, que embora eu tivesse razão nas minhas afirmações, também era necessário estar atento a se os trabalhadores da Administração Fiscal dispõem de condições para que tal não suceda. O caso de que hoje vou falar mostra até que ponto esse meu interlocutor tem razão.

Durante largos anos, a Administração Fiscal recorreu ao trabalho de centenas de técnicos fiscais que não pertenciam aos seus quadros. É a conhecida situação de trabalho a recibos verdes. Que se manteve por muitos anos. Até que o Governo anterior decidiu – e justamente – colocar fim a tal situação. Se os trabalhadores contratados da Administração Fiscal prestavam trabalho reiteradamente, ano após ano, deveriam era pertencer ao quadro. Depois, abriu concurso para preencher vagas no quadro de Técnicos de 1ª. Classe da Administração Fiscal. Concurso que se realizou. Porém, para mal de todos os concorrentes a esse concurso, descobriu-se que, no mesmo, tinha havido batota por parte de alguns concorrentes. Na região de Setúbal. Averiguados os factos, a Administração Fiscal decidiu anular o concurso. Abrindo novo. Ficando todos aqueles que concorreram ao primeiro e justamente passados no exame impedidos de ocupar os lugares em aberto.

Aqui verifica-se um primeiro erro monumental da Administração. O natural é que fossem impiedosamente excluídos de acesso ao preenchimento das vagas os concorrentes batoteiros. Mas não foi isso que aconteceu. Todos os concorrentes, a maioria dos quais depois de se prepararem, com grande esforço, para o exame respectivo, ficarem com a sua situação suspensa de novo exame. O que virá a determinar uma grande trapalhada. Aberto o concurso de "substituição" do primeiro, alguns concorrentes a este decidiram impugnar judicialmente a decisão da Administração. Pedindo a suspensão do segundo exame, por razões cautelares. Na sua opinião, que nos parece adequada, só tinham que ser eliminados do primeiro exame os batoteiros. E não todos.

A situação, relativamente àqueles dois exames, encontra-se indefinida portanto. E suspensa de uma decisão judicial que pode demorar anos. Uma trapalhada, já de si. Mas para que a "pintura" fica um primor, haveria de acontecer ainda uma outra decisão que, presumivelmente, será polémica e, nos seus contornos, arrasantes da atitude da Administração Fiscal. Foi a decisão de lançar novo concurso. Ao qual têm acesso não apenas aqueles concorrentes que só agora satisfazem as condições do concurso, mas também todos aqueles que concorreram ao primeiro e ao segundo acima referidos, dado que não têm a sua situação ainda definida.

Está a ver-se no que isto vai dar. Os concorrentes porventura mais mal classificados neste terceiro do que nos anteriores, não vão estar de acordo. A possibilidade de novas impugnações é gigantesca. Para muitos será o seu terceiro concurso sem resultado. O primeiro foi anulado. O segundo está suspenso de decisão judicial. O terceiro vamos a ver.

Mas se o meu Leitor pensa que as trapalhadas acabaram aqui, desengane-se. A anedota maior está por contar.

A matéria de exame para este terceiro concurso foi fixada em 30.6.2000. Há mais de dois anos, portanto. Durante este período de dois anos, verificaram-se enormes alterações nas Leis Fiscais. Seja por força da Reforma Fiscal parcial verificada, seja por força do aparecimento do Euro, seja peça normal evolução das leis. Grande parte da matéria inicialmente fixada foi já revogada. Naturalmente, os potenciais concorrentes – recorde-se, funcionários da Administração Fiscal - abandonaram não apenas o uso da antiga matéria como deixaram, mesmo de estudá-la. Fixada a data do exame do terceiro concurso para dentro em breve, os potenciais concorrentes tentaram, naturalmente, saber qual era a matéria para tal exame. Já decorreram mais de dois anos sobre a fixação inicial. E, surpreendentemente, foram informados por e-mail, de que se mantinha para exame a legislação fiscal inicialmente fixada, independentemente de ter sido revogada ou não. Isto é, os examinandos vão ter que usar, nas suas respostas, matéria revogada cujo uso e estudo entretanto haviam abandonado. Baseados numa lógica que parece ser normal para toda a gente. Excepto para a Administração Fiscal. Abrindo-se, assim, a porta para novas impugnações.

É fácil imaginar o estado de espírito, a desmotivação, a desorientação, daqueles que têm por principal obrigação fazer funcionar a máquina fiscal. Alguém pode legitimamente admirar-se e indignar-se com o facto de esses servidores públicos cumprirem deficientemente a sua funçao? Pode legitimamente exigir-se o seu empenho? Ao tomar conhecimento destes factos, invadiu-me um suave sentimento de remorso. Ando para aqui a dizer que eles não cumprem, quando devia olhar um pouco mais para cima. Dos chefes, de quem decide, há-de exigir-se um rigor bastante maior do que aos executantes. A eles se hão-de pedir decisões que não deixem os subordinados desorientados, desmotivados, tristes com o seu destino.

E que se há-de dizer da peregrina decisão de usar, em exames da função pública para avaliar da competência teórica dos concorrentes, sobre leis que já não se encontram em vigor? Para que serve isso? A quem serve isso? Os quadros técnicos da Administração Fiscal estão transformados em eternos estudantes de história fiscal arcaica em lugar de cobrarem os impostos. Há razão para nos admirarmos de a situação fiscal no país ser o que é? Vai ser ainda pior se não houver coragem para dar uma vassourada nisto tudo e reformar a Administração Fiscal. A começar pelos autores de ideias tão incompreensíveis como as que fui descrevendo ao longo destas notas.

Uma última observação. Os funcionários da Administração Fiscal, para estarem bem preparados para o cumprimento das suas funções, não apenas em exame mas no seu dia a dia, necessitam de ter sempre à mão os Códigos dos Impostos. É a sua bíblia de bons praticantes. É o seu manual de comportamento. E, como a Administração lhos não fornece, hão-de adquiri-los. Pois bem, O Fisco, muitas vezes pródigo em conceder benefícios e deduções que tragam benefícios eleitorais aos partidos de governo, não permitem, aos funcionários, nem sequer o desconto das despesas feitas para bem servirem o Estado, como é a aquisição dos Códigos dos diferentes impostos.

É evidente que devemos ser exigentes para com os funcionários públicos. Têm privilégios que os outros trabalhadores não têm. Reforma por inteiro, emprego vitalício. Mas havemos de convir que, num quadro como o que aqui fica descrito, não se pode fazê-lo com inteira propriedade.

Crónica EXAME RETROACTIVO - Magalhães Pinto - "VIDA ECONÓMICA" - 22/9/2002

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