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18.6.07

A DUVIDA - 99º. fascículo

(continuação)

XVIII

Não sei se alguma vez chegaste a suspeitar que andavas a ser seguida, Maria do Céu. Aparentemente, não. O Marques era um tipo competente. Quando estava no activo, era ele o escolhido para as tarefas de vigilância. Ele chegou a pensar ter sido descoberto, uma vez, quando olhaste para ele repetidas vezes, no Café Ceuta, procurando passar despercebida no teu interesse. Mas não davas um passo na rua, durante o dia, que eu não conhecesse, ao anoitecer. Desse modo tomei conhecimento daquele dia em que foste a casa da Zélia. Estiveste lá quase toda a tarde. Eu sabia, dos meus tempos de vida a sós, que a Zélia nunca recebia, em casa, nenhum dos seus amantes ocasionais. Mesmo assim, não consegui evitar a tortura de admitir uma alteração no seu comportamento. Não teria ela montado o seu próprio negócio de proxeneta? Esse era, afinal, o destino da maior parte delas, quando as escaras do tempo não podiam mais ser disfarçadas, por debaixo da capa piedosa da maquilhagem. Nem o facto do Marques me ter assegurado não ter visto, durante todo o tempo da tua presença lá, qualquer homem entrar ou sair do prédio, me sossegou.

O meu diálogo com o Marques teve aspectos caricatos. Dum modo geral, as andanças de Maria do Céu não eram, sequer, dignas dum profissional da perseguição dissimulada tão competente, como ele era, dizia o Marques amiúde. Maria do Céu saía de casa, de tarde, pouco depois de eu ir para o jornal. Deambulava vagarosamente pelas ruas, detendo-se a ver montras, ia a um café por alturas da hora do lanche. Foi uma vez ou outra até Leça da Palmeira. Duma das vezes, fora a pé até ao farol da Boa Nova e voltara. Não respondera a uma interpelação qualquer dum fulano, parado, lá ao fundo, já perto da casa de chá, num automóvel vermelho. À medida que os relatórios se repetiam, com a monotonia dum boletim meteorológico no Porto, comecei a duvidar da eficiência do Marques. Não podia ser! Maria do Céu devia fazer algo mais do que calcorrear ruas a esmo, sem paragem ou destino. Cada vez pedia mais pormenores dos acontecimentos mais fúteis. A querer saber se Maria do Céu olhava para trás quando algum homem se cruzava com ela, por exemplo. Ou que lugar tomava no eléctrico. E, se porventura ela viajara num dos bancos laterais, daqueles assentes no sentido da marcha, logo queria saber se cruzara as pernas ou não, se puxara a saia para baixo, quem ia sentado em frente. Nada! Tudo sempre tão normal! O comportamento de Maria do Céu parecia o duma colegial envergonhada. Cheguei a desejar que o Marques inventasse, para satisfazer o meu desejo de não ter sido em vão aquele meu gesto de o contratar, a morder-me a consciência.

(continua)
Magalhaes Pinto

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