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27.6.07

A DUVIDA - 107º. fascículo

(continuação)

Nunca entendera um tornado, Maria do Céu, aquele turbilhão, aquele redemoínho de ar, sugando tudo na sua passagem. Quando saí do apartamento da Dona Néné, eu era um tornado. Rodopiava intensamente entre a alegria de estar enganado e a dúvida do que foras fazer àquele prédio, agora agigantada pelo desaparecimento duma explicação. Em meu redor, tudo parecia tranquilo. As pessoas caminhavam naturalmente, a caminho dos seus destinos, indiferentes, seguras, serenas. Só eu me desfazia num tornado de pensamentos sem sentido, desaparecendo no infinito da confusão. Não tinha vontade de ir para casa, para junto de ti, Maria do Céu. Já nem sei se era por temer mostrar a minha vergonha, tantas coisas más pensara de ti injustamente, se era por ter a certeza de não poder resistir a quebrar as minhas promessas, interrogando-te directamente sobre o assunto. Como poderia fazê-lo sem te revelar a contratação do vigilante? Como te falaria no assunto sem te revelar a desconfiança de que eras objecto?

Fui para o jornal. Pôr em ordem as minhas ideias. Aos poucos, a dúvida sobre as razões da presença de Maria do Céu naquele prédio foi-se sobrepondo à certeza de nada ter a ver com a Dona Néné. Ou esclarecia a dúvida ou daria em louco. Sentia-a morder-me o peito, como se fosse uma víbora, cancro insidioso a ferir e a doer, sem matar nem morrer. Bicho monstruoso, a dúvida. Bizarro. A maior parte das coisas que fazemos, ou pensamos, ou dizemos, tem uma explicação simples e límpida, no contexto do nosso próprio ser. Vistas do exterior, podem ser misteriosas, estranhas, inexplicáveis. Num lampejo, atravessou-me a mente o pensamento de que ia achar extremamente natural todo o comportamento de Maria do Céu, assim soubesse as suas razões para ir ali. Mas foi apenas um lampejo, logo absorvido, triturado, devorado, pela mesma pergunta insidiosa; porquê, porquê, para quê. Por mais voltas dadas aos meus pensamentos, cada porta aberta fechava a anterior, numa cornucópia labiríntica, da qual não conseguia sair, tijolos de negrume aos milhares, a taparem cada brecha rasgada na minha dúvida.

(continua)
Magalhães Pinto

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