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20.6.07

A DUVIDA - 101º. fascículo

(continuação)

A minha primeira ideia foi a de Maria do Céu andar à procura de emprego. Com a brevidade dum relâmpago, essa ideia logo se desvaneceu. Não podia ser. Nunca mais tínhamos falado nisso e todo o comportamento anterior não indiciava que estivesse para acontecer. Agradeci ao Marques e recomendei-lhe a continuação do trabalho no dia seguinte. Pedi logo para deixar o jornal. E fui direito ao tal prédio. Um a um, desci a pé os dezassete patamares, parando em todos eles, para ver os letreiros de quem lá estava instalado. Uma selva promíscua. Alguns dos andares eram, nitidamente, reservados à habitação, eram casas particulares. Espalhadas pelos outros, as mais diferentes empresas, associações, profissões liberais. Alguns escritórios de representações. Duas associações profissionais, pelo menos. Meia dúzia de advogados, alguns indiciando as suas especialidades. Um médico nefrologista, outro oftalmologista, um ginecologista, um - por acaso, era uma - especialista em doenças cardíacas e mais dois ou três que, a avaliar pela ausência de qualificações especiais, deviam ser de clínica geral. Atravessou-me o espírito uma ideia deslocada. O corpo social, nas suas relações jurídicas, precisava de menos especialistas do que o corpo dos indivíduos, apesar de tão parecidos. Descobri mesmo, numa espreitadela furtiva ao passar num momento de porta aberta, um vendedor clandestino de revistas pornográficas, envergonhado sexy-shop de província, espécie de delegação hipócrita duma sede qualquer na Pigalle. Como se os visitantes da Pigalle não tivessem as mesmas necessidades daqueles que, de fora do Porto, não conheciam senão a Serra do Pilar.

Nesse dia, Maria do Céu, da tua ida ao prédio da Gonçalo Cristóvão, fui objecto de duas sensações profundamente diferentes. Por um lado, senti o contentamento dum pai que, com fortes indícios da falha dum filho, encontra a prova justificativa duma sova justa e educadora, sem resquício de remorsos. Por outro lado, senti-me destroçado, senti-me como uma aranha inábil, ao deixar-se emaranhar nos fios da sua teia. Ali estava eu, conhecedor de teres ido àquele prédio fazer qualquer coisa de anormal, sem possibilidades de chegar mais longe. Não podia perguntar-te nada. Se o fizesse, desde logo faltaria ao prometido, de não me imiscuir na tua vida. E, pior ainda, dar-te-ia a conhecer a vigilância sobre ti pendente. Com o provável resultado de não conseguir de ti mais do que das outras vezes, isto é, provavelmente nada. Dei voltas e mais voltas aos raciocínios, engendrei mentalmente as mais inverosímeis coincidências para abordar a tua ida ali com o máximo de naturalidade. Cheguei a pensar pedir ao Vítor - lembras-te?... aquele da discoteca na Foz?... - para vir jantar conosco e, na minha frente, perguntar-te se trabalhavas naquele prédio, no qual ele te teria visto. Ele prestar-se-ia ao jogo. Mas não queria voltar a ver-te perto do Vítor. Suspeitava terem, ele e tu, ido muito mais longe do que um simples jantar e uma cavaqueira fútil à sombra luarenta das palmeiras da Foz.

(continua)

Magalhães Pinto

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