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30.7.07

A DUVIDA - 139º. fascículo

(continuação)

Demoraste cerca de meia hora a recuperar do teu sono artificial, Maria do Céu. A padiola havia sido retirado do carro e pousada no chão. A teu lado, sentado no chão também, por inexistência duma cadeira, olhei a tua palidez adormecida. Senti-me um monstro. Verti lágrimas de sangue, que não pudeste ver. Peguei-te na mão inerte, quase gelada, encostei-a às minhas lágrimas, a correrem silenciosamente, em fio, levei-a aos lábios e depositei nela um beijo, desejando-o de redenção. Por instantes, atravessou-me o espírito, como uma seta dolorosa, a ideia de que podias não acordar. Esfreguei a tua mão nas minhas, numa tentativa vã de a ela fazer regressar o sangue chamado a outras paragens, quem sabe se ao depósito tecnológico de embriões sugados. Ao fim dum século, entreabriste lentamente os olhos. Tonta, sem saberes onde estavas. Porque estavas. Olhaste para mim. Pareceste não me reconhecer. Não sei se notaste o lampejo de alegria no meu olhar de vidro feito pelo choro. Estavas de volta. Agarrei-te as duas mãos e meti-as no interior do meu casaco, junto ao peito. Queria senti-las quentes, como quando me fazias carícias de amor, lá no Mindelo. A minha alegria não durou senão alguns instantes, muito breves. Como um chicote, a tua pergunta, empastelada mas perceptível, vergastou a minha consciência, já então a sentir-se culpada. Uma pergunta tanto mais impiedosa quanto eu sabia brotar dos restos da tua inocência sofrida. Que fizeste do meu mundo?... Que fiz do teu mundo, Maria do Céu?... Uma vez ainda, não questionavas o que tinha eu feito de ti. Mas sim do teu mundo.

(continua)

Magalhães Pinto

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