(continuação)
Eu sabia que era estéril, Maria do Céu... Por isso, a minha mulher me repudiou, exigindo a separação judicial, terra boa incapaz de conviver com um mau semeador. Ainda ecoa em mim a sua expressão de desprezopela minha incapacidade geradora. Perdoa-me tê-lo escondido sempre, Maria do Céu. Quando quis dizer-to, já não era tempo. Já to afirmei e repito-o, a marcha dos acontecimentos não se interrompe, o passado não se reedita. Não sei se é bem ser assim. Quantas vezes penso em como poderíamos ter sido felizes se tivéssemos tentado emendar cada passo mal dado, cada atitude irreflectida, cada sentimento não peneirado pela razão e forçado pela vontade. Talvez etivéssemos hoje naquele apartamento da Ribeira, os dois, sentados no sofá, de mãos dadas, a ver crescer um bébé amoroso que um dia havia de me chamar pai. Porque não é necessário gerar alguém para ele poder ser nosso filho. Vê se consegues corresponder à minha coragem de te pedir perdão neste instante, Maria do Céu, com a cobardia de me perdoares. Um perdão para não te ter dito então que o filho a animar-se nas tuas entranhas era do Miguel. Um perdão para não ter encontrado, sequer e naquele instante, forças para não ter inveja dele. Perdão para ter ficado só a minha raiva por te ver transportar, sem ter sido plantado em ti por mim, o filho que eu tinha querido gerar- Melhor, a filha. Porque, enquanto não tive conhecimento da minha esterilidade, sempre tinha desejado que o meu primeiro filho fosse uma filha.
No dia aprazado para a realização do aborto, acompanhei Maria do Céu ao médico. Como se quisesse ter a certeza da destruição daquela criança invejada. Como se o meu ingénuo gesto de guerra conta a Vida me desse o direito de, qual medalhado general, ao entradecer da batalha. Jogando, no campo onde ela se desenrolava, uma Maria do Céu sem outro desejo que não fosse terminar aquele pesadelo.
(continua)
Magalhães Pinto
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