(continuação)
Ainda hoje, Maria do Céu, tenho no meu espírito a límpida recordação desse nosso primeiro encontro, determinante para o modo como fiquei preso a ti. A contradição entre o calor das tuas palavras e o gelo da tua atitude era tão evidente, tão espessa, tão palpável, que a minha permanente curiosidade pelos fenómenos humanos ficou presa nela, pastosa e irremediavelmente atolada nela. Apesar da minha experiência, nunca tinha verificado um divórcio tão grande entre o dito e o modo de dizer. As palavras gentis, cordatas, amáveis, saíam dos teus lábios carnudos, vermelho rubro, adivinhava-se, levemente arroxeado pela penumbra, sem o mais leve sorriso a envolvê-las. Bem me esforcei por estilhaçar o muro existente, sentia-se, entre nós. Sem êxito. Ofereci-te uma bebida. Aceitaste, agradecendo, e nem lhe tocaste, conhecendo e sabendo que eu conhecia, o intragável refresco de groselha, pago à razão de três contos o litro, servido às mulheres da casa sob o pomposo nome de cocktail. O cigarro era o único e inseparável companheiro autorizado a penetrar na tua intimidade, tal a cadência dos cigarros, acesos uns atrás dos outros. Tentei todas as artimanhas para te fazer sorrir. Em vão. Convidei-te para dançar um trecho romântico. Foste, com a frieza de quem chupa um gelado. Na obscuridade, a lâmpada de raios ultra-violetas realçava apenas duas coisas: o imaculado branco da tua blusa e as pupilas dos teus olhos, tornadas ainda mais opacas pela esquisita luz. Apertei-te fortemente contra mim, pretenso deus a querer animar a pedra que parecias. Debalde. Quando os compassos dolentes do "Feelings" foram substituídos pela estridência dum rock qualquer, interrompendo assim o nosso simulacro de dança, de pés inúteis, e regressámos à nossa mesa, quase me espantei por te ver andar, de tal modo estava à espera que, ao largar-te, te quedasses imóvel, mulher de Set que nem sal tinha.
(continua)
Sem comentários:
Enviar um comentário