(continuação)
II
Muito da minha vida de lobo sem alcateia fora, em tempos, vertida ali. Era um modo diferente de estar só. Quando se ganha o hábito duma solidão indesejada, gostamos de barulho e gente à nossa volta, mesmo que se continue a ter a solidão, apenas, por companhia. Tinham sido noites a fio. A fio, quer no desfolhar do calendário, quer no girar do relógio. Pachorrentamente desfiadas na contemplação dos variados tipos por ali aparecidos, potenciais monos, com mais retoque ou menos pincelada, do meu arquivo de escritos. Assíduo frequentador, ao ponto de merecer o honroso qualificativo de cliente habitual, com direito a gin inglês e desnecessidade de consumo mínimo. De copo na mão, como quem segura numa flor recém-colhida, passara a ser, eu mesmo, uma justificação mais para o nome sugestivo do dancing, dolentemente piscado pelas esverdeadas luzes de neon: "Borboleta Negra". Esgotadas, pela repetição, as novidades do lugar, passara a frequentá-lo apenas em momentos de tédio, com a sem-vontade de quem cumpre, desinteressadamente, um ritual.
Desci as escadas, depois de receber o cumprimento do porteiro, suficientemente servil para justificar a nota de cinquenta à saída, e fui desaguar no estrépito da sala, vomitado pelas muitas centenas de ómios da poderosa amplificação sonora. Tímpanos a vibrar ao compasso ritmado dum trecho em voga. Olhos a rasgar a semi-obscuridade das margens da pista de dança, onde uma escassa meia dúzia de pares ameaçava movimentar-se. Corpos colados com a avidez de quem tenta encontrar num único sentido, o do tacto, compensação para os restantes. Alienados. No ruído atordoante da música. No paladar barato das bebidas a martelo. No estralejar das luzes psicadélicas, a incidir no centro da pista. No odor da transpiração misturada com água de colónia vendida a litro. A clientela masculina não era muito numerosa, talvez por ser terça-feira e o próximo fim do mês ainda estar longe, embora não tanto como o passado.
(continua)
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