(continuação)
Fomos. Levei-a a um tranquilo restaurante da parte alta da cidade, bem lá no cimo de um décimo-sétimo andar, arranha-céus quase único duma cidade de tecto baixo. Para lá das vidraças, o lusco-fusco emprestava à urbe os contornos indefinidos duma tela impressionista, a abusar dos tons cinza. Deixei-a passear o silêncio pelo cenário estendido aos seus pés, que Maria do Céu parecia descobrir pela primeira vez. Lampiões acesos madrugadores serviam-lhe de passadeira. De luz branca, pura, como se suspeitassem que quem a calcava era virgem na caminhada. Escolhi a refeição sem a consultar. Marquei-lhe o ritmo, lento, com o objectivo de prolongar a companhia tanto quanto possível. E deixei a conversa debruçar-se, trivialmente, sobre a cidade, num desafio de encontro de referências, daquela perspectiva e àquela luz tornado difícil, para quem usava do burgo só ver os pés. Lá ao fundo, o rio era um pastel, a reflectir difusamente os anúncios dos armazéns de vinho do porto. Apenas ligeiramente mais prateado do que a Cale que lhe ficava por detrás e no topo da qual dois luzeiros piscavam, já com sono. Olha, ali, aquela silhueta negra, só lhe falta a blusa branca para parecer uma miúda conhecida, erguida altaneira sobre a cidade, como velando por ela como quem vela uma criança... Já foi escalada por um homem, orgulhoso do seu Evereste possível... E com razão!... O que importa não é fazeres melhor do que os outros, é fazeres o melhor que possas... Por isso, a basbaqueira só aparentemente foi provinciana... Sabe bem ver alguém dar o melhor de si, nem que seja um grão de coragem apenas... Um pouquinho mais à esquerda, aquela outra igreja, sabes qual é?... Não, a Lapa fica aqui mesmo, ali, aquela... Já estou a ver, da geografia da tua cidade só conheces os rios... Está bem, não é a tua cidade, mas é a cidade onde vives!... Por falar nisso, ainda não me disseste onde nasceste... Deixa lá... Sabes, então, qual é aquela lá no topo, colada mesmo à Torre dos Clérigos?... Olha, repara bem... Parece mesmo uma nascente da Serra da Estrela, perdida entre calhaus... Tal como lá, também dali escorrem até ao rio, como se fossem cataratas, meia dúzia de vielas estreitíssimas, com requebros de nazarena virando, a quem não faltam sequer as sete saias a esvoaçar das janelas... Claro, é a Sé!... Diz-se que, à noite, ninguém lá pode andar, a não ser com uma naifa bem afiada; mas não acredites, há muito mais crime, sem o benefício da reputação, noutras zonas da cidade... Ali, como noutros bairros da cidade, há gente que sua de sol a sol e gente que só se levanta já a lua vai alta... Há gente que odeia e gente que ama... Há velhos, há jovens, há crianças... Há filhos gerados pela volúpia e há filhos gerados por amor... Não há muita diferença assim entre a Sé e a Foz... A não ser, talvez, no revestimento do pavimento, de granito duro na Sé e de alcatrão macio na Foz... Olha ali, outra igreja, sabes qual é?... É incrível, não te parece?... Na lufa-lufa de cada dia, a gente nem se dá conta ter esta nossa cidade uma igreja em cada canto!... Não, não é nenhum avião, aquilo, é o farol de Leça a mandar as traineiras quedarem-se pelo largo, há por ali muita penedo desde o tempo do António Nobre... Não, não era nenhum fidalgo... Tinha a alma mais simples que a dum pescador de sável... Ah! aquele coador de luz... deve haver por lá alguma exposição, para estar assim tão iluminado... Olha, engraçado é ver do outro lado... Daqui não se vê, hei-de lá ir contigo... é ver os arcos de Miragaia com aquilo pousado em cima; não se sabe bem se é ficção científica, com uma nave acabadinha de chegar a um planeta dez mil anos atrasado, ou se é uma centopeia com um par de olhos coruscantes para cada perna, no dorso da qual viaja uma romaria minhota... Repara como começam a piscar os anúncios luminosos da baixa... Pirilampos duma aldeia evoluída, não sei se alguém repara neles... Mas cumprem a sua função de animação silenciosa o melhor que podem... Jogam às escondidas com os transeuntes que se dirigem para os cinemas... É bom haver cinemas na baixa, sabes, Maria do Céu... E o Rialto aberto até às duas da madrugada... Ou a Brasileira, onde os artistas de teatro vão espevitar o sono, antes de partirem para o Transmontano, na gula duma ceia quase matinal... Ou o Guarani... engraçado o Guarani... Se quisesses, podias fazer uma orquestra sinfónica com os instrumentos que por lá poisam, depois dos bailes ou da revista... É bom haver tudo isso lá por baixo...Senão, aquilo ficava um deserto... Mais morto do que nos parece aqui de cima. nBom, vamos à papa... este bife está a chamar-nos...
(continua)
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