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27.3.07

A DUVIDA - 19º. fasciculo

(continuação)

Ao fim dum século, Maria do Céu surgiu no topo do lanço inferior das escadas. Deteve-se um momento, um leve ar de surpresa a enrugar-lhe o sobrolho. Elegante, no seu fato preto e blusa branca. Agarrou-me por pouco, estava de saída... O tuteio da noite de intimidade esfumara-se, cerimónia imposta pela mudança de circunstâncias. A luz difusa, vinda de cima, deixava o seu rosto mergulhado na penumbra, ampliando o enigma. De longe ainda, estendi-lhe a mão, mais como convite do que como auxílio. Com uma dignidade indiferente, aos meus olhos se afigurando imperial, desceu os últimos degraus e interrogou-me mudamente. Propuz-lhe um jantar em comum e associei as suas reticências à perda dos proventos desse dia, melhor dizendo, dessa noite. Quase deixava escapar, irritado, que a compensaria de tal perda, mas prevaleceu o meu desejo de sucesso sem a intervenção do dinheiro. Insisti, tão delicadamente quanto sabia. Afinal, sempre tinha que jantar e mais valia fazê-lo acompanhada. Tanto quanto eu julgava, já bastava de solidão, sua companheira preferida, no seu quarto, no quarto dos outros, próprios ou alugados à hora. Quem me contara viver ela sózinha? Era óbvio, bastava ver com olhos de ver, com estes que a terra havia de comer, o fundo dos seus: nada! Pobrezinhos dos vermes, iam todos morrer à fome, daí por uns cinquenta anos, logo chegassem aos seus olhos! Estes continuavam vazios. Pelo menos, entre as pestanas e a cortina, permanentemente baixada, que escondia o palco da sua alma.

Não sei se foi impressão minha ou se realmente, e pela primeira vez, uma expressão divertida perpassou, como um raio, no negrume dos teus olhos, Maria do Céu, quando te convidei para jantar. Deve ter sido apenas ilusão, pois, logo de seguida, aceitaste o convite, com a indiferença dum peixe no aquário. Nem sequer o trejeito enfadado duma criança a quem não apetece comer a sopa. Nem sequer a agitação duma pomba da Avenida, quando se lhe atiram umas migalhas de pão. Nem desalento, nem euforia, nem sequer um sorriso de agradecimento. Vamos, disseste, quase com a frieza com que, seguramente, caminhavas para os quartos oficina da tua profissão! Abafei a auto-censura, a aflorar em mim pela iniciativa, com os cobertores da minha determinação.

(continua)

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