(continuação)
Sabes, Maria do Céu?... Não devemos nunca levantar um dedo sem pensar aonde vamos pousar a mão, de seguida. Se não fizermos assim, arriscamo-nos a que o braço não seja mais do que um balão arrastado pelos irónicos ventos da sorte. A tua atitude daquela noite era um desafio. Há muito tempo sem desafios, eu decidi aceitá-lo. Não te deixaria enquanto não conseguisse ver em ti uma chispa de vida, fugaz fosse ela. Um sorriso, um olhar, uma lágrima, até uma ira. Sobretudo enquanto não obtivesse resposta às perguntas feitas e habilmente iludidas. Quem eras, que fazias, porque estavas ali. Pareceu-me ver-te estremecer, como se um súbito arrepio de frio te tivesse percorrido, quando te perguntei donde eras. Mas cuidei ter-me enganado. Que podia ser mais gélido do que tu? As respostas recusadas, ali, no meio daquele estrépito todo, talvez as conseguisse na intimidade, pensei. Por isso te sugeri que ficássemos juntos até ser de manhã. Profissionalmente, disseste-me quanto isso me custaria. Nem ouvi. Nesse momento, daria toda a minha riqueza para ter a oportunidade de rebentar o casulo da tua reserva e ver, às claras, o teu ser real. Levei-te para o meu apartamento. Amei-te, com o vigor e a ternura há muito tempo esquecidos. Tentei fazer-te correr, à desfilada, pelas veredas de suaves sensações. Desdobrei-me. Acarinhei-te mansamente, percorrendo o teu corpo como uma brisa outonal de fim de tarde. Fiz das minhas mãos penas de ninho a aconchegar o frio do teu inverno. Fiz dos meus lábios uma flor de primavera a perfumar as grutas do teu recolhimento. O meu corpo a arder tentou provocar-te um incêndio estival. Afoguei-te com a violência dum tornado, arranhei-te, fustiguei-te com o chicote do meu desespero impaciente. Nada. Percorreste todas as teclas do piano do amor com a perfeição dum pianista tecnicamente exímio. Mas nem por um só momento, nem sequer num único compasso, o trecho tocado teve a chispa de fogo que um artista lhe emprestaria. Tentei outro caminho. Acusei-me. Falhado. Não conseguira despertar em ti a mulher adormecida. Inepto. Tolice, disseste. Eu fora perfeito e não tinha culpa por não reagires ao meu esforço. Pareceu-me a primeira vulnerabilidade, o primeiro bloco quebradiço da barreira que me tinha à distância. Gentileza profissional, concluí; afinal, sempre era um cliente. Resolvi insistir. E da insistência obtive a primeira informação verdadeiramente válida: nem eu, nem nenhum homem, conseguiria alguma vez acordar em ti qualquer interesse pelo acto sexual. Ainda quis saber porquê. Mas confessaste o sono e fugiste à resposta. E, daí a pouco, dormias.
(continua)
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