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22.3.07

MEMORIA


No meu imaginário, ainda está indelével o gesto que sempre considerei um supremo acto de loucura. Vi-o num filme qualquer da juventude. Li-o num romance de Dostoievsky. Chamavam-lhe a roleta russa. Para alguém que ainda não saiba o que é, o gesto era um combate entre dois contendores. Com uma única arma. Um revólver, no tambor do qual apenas existia uma única bala, cuja localização na ordem de disparo, nenhum dos contendores conhecia. E, sucessiva e alternadamente, cada um dos "malucos" ia apontando a arma à própria cabeça, premindo o gatilho. Se a única bala não estava na culatra, um estalido seco anunciava o adiamento da morte certa. Se a bala estava na culatra, adeus. Era um jogo mortal, de nervos. Mais do que morrer ou ver morrer, cada um dos contendores pretendia ver o outro quebrar, cedendo à pressão e perdendo, assim, a contenda.

Ultimamente, a imagem tem saltado, com frequência, do meu subconsciente, onde se encontrava adormecida, para o meu pensamento quotidiano. Só que já não lhe chamo roleta russa. Chamo-lhe roleta portuguesa. Portugal, os Portugueses, estão a jogar uma imensa e multiplicada roleta portuguesa. Não se apercebem, nem por um momento, de que a "morte" – enquanto país independente, livre, desenvolvido, feliz – está aí para a frente, escondida numa bala cuja localização no tambor dos nossos comportamentos colectivos desconhecemos. A arma é a exacerbação daquilo que julgamos serem os nossos direitos e o envio para o país das malvas do que são, indubitavelmente, os nossos deveres. Se quiséssemos colher um exemplo flagrante do que digo, temos aí o comportamento dos educadores infantis. Em romaria, a exigirem não trabalhar num período em que é suposto o façam. Um exemplo, apenas. Há mais. Muitos mais. E o fenómeno é tanto mais bizarro quanto, provavelmente, a maioria de nós se insurge – como eu estou a fazê-lo agora – contra o comportamento dos outros, mas não deixará de agir identicamente se a capela de interesses atingida for a nossa.

Tal como na roleta russa, a roleta portuguesa transforma-se num jogo de nervos. Apercebemo-nos de que as coisas não estão a seguir o bom caminho. Vivemos os nossos dias em sobressalto. Sentimos que o jogo é perigoso. Muito ao jeito português, procuramos encontrar os "culpados" por estarmos metidos em tal jogo. Acusamos tudo e todos da viciação das regras. Olhamos para o alto. Apontamos o dedo à classe política. Construímos a indestrutível barreira que separa o "eles" do "nós". Indestrutível e dupla-face. Porque "eles" também também fazem tudo para se separarem de "nós". Cegos, não vemos que somos todos "nós". Esse, um problema fulcral da democracia. Ainda em grande parte viciados nas regras de outros tempos, não vemos que a dicotomia desapareceu. Foram "eles" que conduziram o país ao estado de semi-bancarrota que vivemos. Mas somos "nós" quem arca, agora com os custos. Não percebemos que, se temos uma classe política minúscula nos seus objectivos, mesquinha nas suas modernices dos factos políticos inventados e explorados até ao enjoo mas que em nada contribuem para a nossa felicidade colectiva nem para o nosso bem-estar, uma classe política feita de anões a presumir de gigantes, essa classe política somos "nós". Transformamos o país numa imensa romaria povoada de gigantones, por debaixo dos quais se esconde a nossa verdadeira e reduzida dimensão. Rimos alarvemente do espectáculo, sem medirmos que, nele, somos, simultaneamente, os espectadores e os actores. Sem repararmos que, tal como na fábula, quando as luzes da ribalta se apagarem, ficaremos no degrau corroído do palco, a chorar, feitos palhaços infelizes.

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Excerto da crónica "A ROLETA PORTUGUESA" - Magalhães Pinto - "VIDA ECONÓMICA" - 29/9/2002

(Imagem de Wikipedia)

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