(continuação)
Julgo que a tua fuga do nosso primeiro contacto foi uma premonição, Maria do Céu. Uma recusa ao envolvimento que iria marcar as nossas vidas. Ansiosamente, reconheço hoje, procurei-te. E parecia um colegial à espera do primeiro beijo, Maria do Céu, enquanto aguardei informações que me levassem até ti, fora do ambiente onde o nosso encontro teria sempre a mercantil conotação duma transacção suja e desonesta, me parecia agora. Insidiosamente, naqueles dias seguintes ao nosso primeiro encontro, a tua lonjura ia-se apoderando de mim, criando esta sensação de incompleto, hoje de novo parte do meio homem que me sinto. Intuí, nessa tarde, os nossos destinos projectados, em conjunto, muito para além da minha descoberta das razões para a meia mulher adivinhada em ti.
Eram quase sete horas quando a Zélia me telefonou para o jornal. Localizara o poiso habitual de Maria do Céu fora das horas de expediente, como ela disse. Uma pensão de segunda, na zona de Antero de Quental. Saí ligeiro, avisando que não voltaria nessa noite. Toquei à campaínha. Uma empregadita, traços de aldeã ainda por desbravar, abriu a porta, com um misto de curiosidade e cumplicidade. Mandou-me entrar e esperar, quando lhe disse ir por Maria do Céu. A ver se estava. Passei ao corredor, na circunstância pomposamente chamado de sala de espera. Dois sofás individuais e um cinzeiro de pé alto, no meio, com duas ou três pontas de cigarro esmagadas com nervosismo, notava-se. Em frente, um pequeno balcão, não mais de meio metro de comprido, dificilmente poderia ser chamado de recepção. O livro de registo de hóspedes, nele pousado, e as cavilhas dum pbx pré-histórico, davam-lhe o toque mínimo necessário à identificação. Ao lado, uma escada, deficientemente iluminada por uma ténue claridade a despejar-se da clarabóia, situada três pisos acima. Não era preciso ser um especialista das andanças nocturnas da cidade, para perceber que os quartos situados nos andares superiores deveriam ter uma taxa de ocupação diária superior a cem por cento. Algures, no rés-do-chão, uma criança chorava, desalmadamente, enquanto uma esganiçada voz de mulher insistia com ela. Come a sopa, Chana. Come a sopa, Chana. Ainda ta enfio pelas goelas abaixo. Come a sopa, Chana. Sopa que, pelos vistos, a Chana se recusava a comer, enquanto subia de tom no seu berreiro. De longe a longe, a descarga dum autoclismo lá por cima ganhava os contornos melódicos duma orquestra a querer acompanhar o solo agudo da Chana.
(continua)
Sem comentários:
Enviar um comentário