(continuação)
Depois, quando tornámos a ser donos dos nossos sentidos, Maria do Céu, olhámo-nos e sorrimos. Tínhamos acabado de aprender, creio, que um mais um pode ser um! O vidro transparente dos teus olhos, via-o pela primeira vez, deixava-me sentir a tua emoção como se minha fosse. O que adensava o teu mistério, Maria do Céu! Recordo, como se estivesse a acontecer agora, que, naquele instante, já não era só o meu corpo a exigir o desvendá-lo. Era a minha alma, era a minha voz rouca, a gritá-lo surdamente. Diz-me qual é, diz-me, não te recuses! Verás! Se fizeres meu o teu mistério, ele deixa de apavorar-te. Abre os olhos, não fujas de ti! Conta-me! Claro, tenho interesse em saber, bebo, devoro, respiro o desejo de conhecer-te, conhecer a tua história! Quero perceber porque apagas, conscientemente, o fogo que em ti crepita. Insisto! E insistirei enquanto me não contares, enquanto não souber, enquanto me não sentir o vento que dum fósforo faz uma chama e duma chama uma fogueira! Quero sentir o calor, encerrado em ti, feito num pedaço de vida inextinguível! Recordo como, durante todo o tempo da minha exigente súplica, os teus olhos fixos em mim deixaram apagar-se o fogo que, fugazmente, os iluminara. E o breve lampejo de raiva também.
Muralhas protectoras derrubadas, passara a ser uma batalha com vencedor assegurado. A resistência de Maria do Céu era cada vez mais débil, embora estrénua. À míngua da força moral correspondia o desespero do vencido, a julgar virar-se do avesso o mundo construído ao longo de tanto tempo, esquecido do eterno retorno ao real permanente. Nem a súplica de misericórdia, quase raiva, a fazer dos seus olhos um misto de sibilino látego, a fustigar-me, e de suave pena, a acariciar-me, abrandava a minha implacável vontade de a libertar do que quer que fosse que a peava.
(continua)
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