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6.4.07

A DUVIDA - 28º. fasciculo

(continuação)

Sentou-se no sofá, pernas cruzadas, cabeça recolhida nas mãos enclavinhadas, corpo sacudido por soluços inaudíveis, a expulsar um rio de dor feito choro, a escorrer no leito dos seus seios, nus ainda. Pouco a pouco, sossegou. Olhou-me, com uma expressão decidida e baixou novamente o olhar. E, numa voz monocórdica, sem tom nem amplitude, quase um murmúrio, percorreu recordações dolorosas, há muito escondidas por detrás do biombo do esquecimento aparente.


V


Rala vem em letras minúsculas nas cartas militares, perdida entre as sinalefas de dois postes de alta tensão. Quando Maria do Céu nasceu, ainda não havia nenhuma daquelas moradias estrangeiradas, de azulejos reluzentes e telhados do império, de caixilhos anodizados e vidros apenas translúcidos, que, vistas do monte, lhe dão aquele ridículo aspecto de reminiscência parisiense, onde toda a beleza desapareceu e só ficou a Bastilha.

Maria do Céu nasceu, como toda a gente na aldeia, em casa dos pais, no largo de Santo António, trazida ao mundo pela Ti'Cassilda, lavradeira avantajada de carnes e faladora como uma galinha a sair da poedeira. Gabarola, com fama avultada e escasso proveito, de ter servido de parteira a quase toda a gente da aldeia com menos de quarenta anos. E nenhum lhe tinha saído morto. A Ti'Cassilda atribuía, jocosamente, tal facto à experiência própria, dada pelos seus onze filhos, e aos ensinamentos do homem, o Ti'Joaquim, ele mesmo presença indispensável junto de qualquer vaca da aldeia, no momento de parir.

(continua)

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