(continuação)
Foi por essa altura que a etapa da doutrina houve de ser cumprida. Um certo misticismo apoderara-se dela. Desde muito pequena, acompanhara a mãe à missa dominical, celebrada na pequena capela, ao lado do cemitério, onde o senhor abade da vila vinha alimentar a espiritualidade dos aldeões. Mais a das mulheres e menos a dos homens. E alertá-los para os perigos deste mundo, com o demónio à espreita em cada canto, à espera do mais pequeno descuido para comprometer irremediavelmente a vida eterna, legítima aspiração de todo o cristão convicto. Insensatez! Insensatez seria trocar a vida esplendorosa, de mel e sol, de radiosa luz, num jardim celeste recheado de flores variegadas e solícitos anjos, pelas trevas infernais, onde, até ao fim dos tempos, um fogo violento queimaria, sem consumir, as almas pecaminosas, vencidas pela tentação da carne ou dos bens materiais ou, ainda, faltassem à missa ao domingo ou escusassem a côngrua pascal. Ah! e não se confessassem ao menos uma vez em cada ano.
A doutrina, aprendida pelos outros em jeito de papagaio, foi por ela interiorizada com tal força que, a pouco e pouco, as obrigações caseiras começaram a passar para segundo plano. A sujeição dos deveres terrenos ao poder do ser omnipotente, omnipresente, omnisciente. Omnívoro. A fuga a todos os actos e omissões ofensivos do deus todo poderoso. Nos sonhos, um deus parecido com o Senhor dos Passos, aquele do canto da direita da capela, joelho em terra, vergado ao peso duma enorme cruz, donde pendiam cachos de feias serpentes, uma por cada pecado da gente da aldeia. Ou, quando os sonhos eram trazidos pela consciência pesada dum pensamento inocentemente mais matreiro, um deus escondido sob umas barbas enormes, irado, imponente, agigantado, dedo espetado acusadoramente na sua direcção, tal e qual como o senhor abade fazia, nas homilias, quando, com voz estentórea, fazia estremecer a igreja e as almas com o comando irrecusável de "Pecadores! Arrependei-vos!".
O pavor de Maria do Céu pelo pecado foi progressivamente aumentando, fazendo-a correr, semanalmente, para o confessionário, em busca do perdão para as mil e uma faltas cometidas, desde a pequena mentira pregada à mãe quando se atardava nos recados, por via do tempo perdido na igreja, na contemplação do Senhor dos Passos, até ao surripio de pequenas moedas, esquecidas em cima da cómoda, pressurosamente depositadas na caixa de esmolas do Santíssimo, não fora ele zangar-se da devoção que o outro lhe merecia.
(continua)
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