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10.4.07

A DUVIDA - 32º. fascículo

(continuaçao)

Lentamente, um torpor delicioso tomou posse dela. O sangue devia ter regressado à marcha costumeira, no dédalo das suas veias. Do negrume, porém, uma forma humana, de contornos mal definidos, rosto barbudo no qual dois olhos, coruscantes e irados, a fitavam, parecia apontar-lhe um dedo acusador, gritando-lhe em silêncio: "Pecadora! Arrepende-te!". Fechou os olhos, apertando as pálpebras com força, num esforço inglório para escapar à visão, só bem sucedido quando os primeiros livores do amanhecer, a custo penetrando pelas fendas das portadas da janela, a esbateram, deixando-a entregue a um sono intranquilo, povoado de pesadelos infernais.

A mãe despertou-a, já o dia ia alto. Enguliu à pressa as sopas de café com leite, amalgamadas na tigela, e correu à igreja. Ajoelhada aos pés do Senhor dos Passos, mal encontrou forças, por entre o debulho de lágrimas, para soluçar um confuso pedido de salvação. E, no domingo seguinte, era a primeira da fila de mulheres para o confessionário. Transida de vergonha, que a rede do confessionário mal filtrava, là deu conta ao senhor abade do pecado mortal incorrido. E perdoado, à custa de dois terços rezados de afogadilho, não fora morrer antes de cumprida a penitência salvadora.

Se a absolvição divina aliviou, temporariamente, os temores de Maria do Céu quanto à perda eterna das delícias celestiais, a noção da culpa, pela violação da intimidade dos pais, foi ganhando raízes cada vez mais profundas, à medida que os anos foram correndo. Em breve, na aldeia, todos a chamavam de arisca, devido ao modo pressuroso como se escapava aos bailaricos no adro e evitava os rapazes da sua idade. A custo a levara a mãe, uma noite, à desfolhada na eira do Ti'Joaquim. Talvez aquela filha, tornada cada vez mais bicho de mato, em contacto com os da sua igualha e envolta nos folguedos brejeiros da circunstância, ganhasse um pouco da alegria que lhe ia minguando. Raio de rapariga! Se continuava daquele jeito, bem seria seu destino aturar sobrinhos em vez de filhos!

(continua)

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