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14.4.07

A DUVIDA - 36º. fasciculo

(continuação)

VI


Tão longo rosário desfiado nessa noite, Maria do Céu! Não sei se te apercebeste, mas quando, visivelmente exausta, interrompeste a tua penosa recordação, clareava já a noite e da rua subiam até nós os primeiros ruídos que, daí a nada, encheriam, multiplicando-se, a Ribeira. A tua expressão, novamente sem vida, contava como era doloroso, para ti, mexer nos sedimentos do sofrimento passado. Não que a história contada me esclarecesse; antes pelo contrário. Sentia-me confundido num labirinto de convicções paradoxais, perdido nos actos contraditórios definidores da tua trajectória. Como podias ter passado, no tempo do pestanejar duns pés de bailarina, da austeridade à liberalidade? Da recusa do acto sexual á sua prática infinita? Fiquei aflito, por largos momentos incapaz doutra atitude, doutro gesto, que não fosse afagar os teus cabelos afundados na almofada. A minha alma, empedernida por anos de cínicos sentimentos, distendeu-se e verteu, do cubículo onde comprimimos o que nos faz sofrer, um rio de compaixão, se não era de ternura. Se conseguisses, nesse instante, medir o que eu trazia nas mãos para te oferecer!... Um mundo. Um mundo para colorir, mesmo de lápis quebrado. Dores de viúvas, amassadas na tragédia. Tristezas perdidas pelos bancos de jardim. Histórias, vidas, já para trás das minhas costas. Choros de crianças. E os seus risos. Tranças de meninas. O modo como, risonhos, os jovens enfrentam o que lhes é adverso. Os beijos de pureza que eles trocam em cada esquina. O aspecto cansado da esperança num homem desenganado pelo trajecto da vida. A monotonia dos casais, as suas frases feitas, silenciosas. A alegria e a cumplicidade dos segredos amorosos. Um mundo... Um mundo nas minhas mãos a acariciar os teus cabelos. Um mundo que não te conseguia dar, alma atormentada pela visão dum homem a possuir-te. À força. Perante a minha raiva impotente, porque futura. Estranho! Nem por um instante me lembrei dos muitos que terias já tido, nos teus braços frios, desde que vieras de Rala... Apesar da impotência, nesse mesmo instante decidi-me: ia ajudar-te a encontrar o rumo, a derrotar, duma vez por todas, as inquietações absurdas dum espírito sem norte, inidentificado, nas suas profundezas, entre o desejo carnal do pai e o receio moral da mãe. Entre o gesto de amor roubado e o acto de amor vendido. Foi talvez uma decisão estúpida, hoje reconheço. Não há barreira para um rio caudaloso que o não faça transbordar. E tu parecias, então, no doce aspecto da fragilidade assumida, nessa madrugada decisiva para o nosso destino comum, um débil regato de margens facilmente definíveis. Por isso não me arrependo. Por isso e porque, se o esforço não valeu pelo resultado, valeu pela determinação da nossa tentativa.

(continua)

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