Pesquisar neste blogue

15.4.07

A DUVIDA - 37º. fasciculo

(continuação)

Quando saí, para comprar o jornal, depois dum breve duche e ainda com a barba por fazer, Maria do Céu ficou adormecida no sofá, braços gentilmente cruzados a encontrarem-se sob o rosto, o corpo coberto por um robe meu, trazido do amontoado do armário. Antes de bater a porta, o meu olhar repousou casualmente na reprodução do "Guernica" e, por um instante, as figuras animaram-se como se, numa tela de cinema, estivessem a ser projectados os fantasmas que povoavam os sonhos duma menina feita mulher às três pancadas.

A partir desse dia passou a viver em minha casa. De início, notava-lhe a expectativa impaciente do meu regresso do jornal. Procurava dissimulá-la, mas as pontas de cigarro acumuladas no cinzeiro e as revistas espalhadas pelo chão testemunhavam a verdade com evidência. Algumas vezes procurei saber como ocupara o seu dia; mas as respostas evasivas levaram-me a ter como mais avisado o respeito pela sua independência, aliás sintomática no modo como recusou o dinheiro que pretendi oferecer-lhe. Ora essa! Estou aqui porque quero!... Com o pé de meia já amealhado, bem posso sobreviver algum tempo sem rendimento algum!...

À quinta-feira, dia da minha folga no jornal, a noite tinha um gosto especial. Jantávamos cedo, íamos ao cinema e, como dois namorados, adorávamos dar uma volta pelas ruas do Porto, àquela hora pouco menos que desertas. Acabávamos quase sempre numa ceia ligeira numa marisqueira de Matosinhos. Numa dessas noites, perguntei-lhe se não tinha saudades dum bailarico. Era a primeira vez que, de perto ou de longe, referia algo relacionado com o passado recente. Senti alguma frieza no seu olhar mudo. Não és obrigada a ir!... Eu é que estou com ganas de esmoer um bocado estas banhas com que a vida sedentária me vai engrossando o perímetro!...

(continua)

Sem comentários: