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16.5.07

A DUVIDA - 68º. fascículo

(continuação)

Acho que a minha relação contigo sempre teve essa característica, Maria do Céu. Uma ânsia enorme de te fazer descobrir todo o meu conhecimento. A começar por ti própria. Era como se, às vezes, me sentisse teu pai, com a responsabilidade de pegar na tua alma e dar-lhe a forma da minha. Era como se houvesse eu de mostrar-te os caminhos a percorrer, parando a cada encruzilhada para respirar e te apontar, de dedo em riste, a via obrigatória. Era como se estivesse permanentemente atento às tuas necessidades, tanto quanto aos teus erros, esperando que o dever de te dar o pão me desse o direito de te dar a educação. Nessa altura ainda não via isso com clareza. Mas hoje, decorrido este tempo todo, atravessado o mar encapelado do nosso relacionamento, vejo-te, simultaneamente, com a ternura do pai, indestrutível por maiores que sejam os erros do filho, e o desencanto do amante, traído no seu sentimento de posse. Bem vistas as coisas, Maria do Céu, acabei por ser vítima desse sentimento dúbio, imperceptível então. Enquanto pai, tudo fazer para te escancarar as janelas da Vida. Enquanto amante, cerrá-las, trancá-las, como se a própria luz do sol fosse uma carícia indevidamente roubada.


Saimos cedo do hotel. A pé, percorremos toda a distância que vai das Tulherias até ao Arco do Triunfo. O ar limpo da noite acabada há pouco, ainda não estava conspurcado pelo trânsito. Daí a nada, um rio metálico e ruidoso, barrado, aqui e além e de modo intermitente, pelos semáforos enormes, inundaria a cidade inteira, como se o Sena, furioso pelo sossego perturbado, derramasse metralha por sobre as margens. Parámos a meio dos Campos Elíseos, numa das esplanadas da avenida, para tomar o pequeno almoço, uma chávena de café com leite e um croque monsieur. Bem disposto como uma criança a quem deixam brincar com o seu brinquedo preferido, ainda me ri com o empregado, pedindo também um croque madame para Maria do Céu. Prosseguimos. Rondámos a Étoile e descemos para o Sena. Como quem se prepara para destapar, ante os olhos extasiados duma criança, a sua primeira caixa de lápis de cor, levei Maria do Céu pelo Trocadéro e entrei pelas traseiras do Palácio de Chaillot. Chegamo-nos à plataforma debruçada sobre os jardins do palácio e deixei-a contemplar, por largo tempo, a grandiosa concepção arquitectónica do conjunto, a que os canhões de água dos jardins acentuavam o movimento. O palácio assemelhava-se a um gigantesco par de braços apaixonados por toda aquela beleza, incapaz, por pequeno, de a abraçar. Os jactos de água quase escondiam por completo a imaculada brancura da Ponte Iena, fazendo a majestade altiva e elegante da Torre Eiffel repousar, aparentemente, sobre um pedestal de água em ebulição, tendo por pano de fundo a verdura dos Campos de Marte e a silhueta da Escola Militar, quase a perderem-se na neblina matinal.

(continua)
Magalhães Pinto

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