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24.5.07

A DUVIDA - 76º. fascículo

(continuação)

Fui recebido com honras de vipe. Para os emigrantes portugueses, encontrar um compatriota de passagem é sempre uma romaria. A Senhora da Alegria, com a procissão dos amigos e familiares, as crianças a servirem de anjinhos. Sem senhor abade, a não ser que o mais evidente do escasso círculo de relações a isso se preste. É a oportunidade de falar com um igual, de atabafar os recalcamentos da servidão com o alarde duns francos ganhos à custa do sol a sol. É como se arrolassem, a cada momento e desesperadamente, uma testemunha credível para a correcção dum salto dado, numa noite escura como breu. Apesar dos trabalhos, dos sustos, das privações. É como se quisessem convencer os outros, os sem coragem para abandonar as berças, um a um, de ter sido aquele o único meio de limpar da pele o estigma da miséria. Daí, a festa. E se, como era o meu caso, a testemunha era daquelas que iam mesmo dar testemunho público, então a festa não dispensava sessão solene. Os homens vestiam o último fato adquirido no sentier, com calças à boca de sino, e engravatavam floridamente a camisa de nylon ainda por estrear. As mulheres usavam a última novidade garrida do Printemps, de saia comprida e às pregas, e enfeitavam-se com as marroquinices do marché des puces. Como ia longe o tempo das roupas escuras e do lenço a guarnecer a cabeça, quando não uma rodilha a servir de base ao carrego! O brio, nas crianças, tinha a forma de sapatos, habitualmente grandes, porque estão a crescer muito depressa, sabe como é, aqui manjam muito melhor.

Aquele salão devia ter sido, até há pouco, uma mercearia. Com a clientela predominantemente portuguesa. Ainda se sentia o cheiro de bacalhau, incrustado nas paredes dum ocre deslavado, nas quais, em tom menos sujo, havia ficado impressa para sempre, a silhueta duma estante. Estava quase cheio, o salão. Homens e mulheres. Uma relativa surpresa para mim, que esperava encontrar apenas a direcção. Apenas isso tinha pedido, na correspondência trocada antes de vir. Num canto, uma mesa com fortes reminiscências de portugalidade. A toalha branca, de linho, com bordados de Viana. Os pastéis de bacalhau. Os croquetes. As rodelas de salpicão, aqui estragado o purismo pelo retoque dumas tantas fatias de salame italiano. No bar improvisado, os característicos garrafões, de cujo conteúdo as bordas não deixavam dúvidas: tinto, provavelmente verde, seguramente bom. Eram aguerridas as provas de vinhos no período a seguir às férias. Cada qual se esmerava no petróleo là do sítio. E muito barulho. Dum disco do António Mourão, roufenho já, de tantas vezes tocado. Paradoxal. Ó tempo, volta pra trás. O que ninguém devia querer, embora não se furtando à nostalgia da aldeia lá longe. Muito barulho. Das conversas em voz alta, a lembrar o mercado da Ribeira em dia de sável aos centos. Muito barulho. De algumas crianças, a jogarem ao pilha por entre as cadeiras pretensamente alinhadas.

(continua)
Magalhães Pinto

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