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27.5.07

MEMORIA


Aquela pequena aldeia não vem nos mapas tradicionais. Só se pode dar conta dela se olharmos para as cartas militares. Ou, então, passando por ela por acaso. Porque ninguém vai a Pitões de propósito. O nome de aldeia é este ou outro qualquer. Não importa. É uma aldeia portuguesa, perdida no sopé de uns montes quaisquer do país pedrícola que somos. Uma dúzia de casas, poucas meias dúzias de habitantes e cabeças de gado. Ovino e bovino. Mais de mil cabeças já teve, dizia o narrador. Agora são escassas centenas. O gado tem diminuído ao ritmo da redução dos habitantes. Na aldeia, uns são pastores. Outros trabalham no campo, produzindo alimento para o gado e algum para a subsistência própria. Um por outro trabalha fora da aldeia. Como o pai de dois dos nossos heróis, que trabalha na construção civil. As casas são de pedra à vista, ao bom estilo rural português. Fogão de lenha, mais lareira que fogão, a ocupar meia cozinha. Enormes. A cozinha e a lareira. Não consta o nascimento de qualqu3er personalidade da nossa história nessa aldeia. Nem nenhum político. Nem nenhum jogador de futebol. Nem os montes são próprios nem as bolas aparecem. A primeira prenda que um dos nossos heróis recebeu na vida foi, ao que contava o narrador, um tractor de corda (ou de pilha, não cheguei a perceber bem) oferecido pela junta de freguesia no Natal do ano passado. Curioso. Um tractor. Parece uma prenda inteligente. A melhor para gente do campo. Prenda igual para todos os miúdos da aldeia. Não mais de seis. Apesar da trivialidade duma vida vivida numa aldeia assim, esta ficou conhecida de meio Portugal. Porque lá, nessa aldeia humilde, mora um exemplo. Melhor, quatro exemplos, ao que parece. O pai não deu a cara. Mas tem que ser também um exemplo para ter uma mulher assim e dois filhos assim.

Não há, na aldeia – nem, ao que consta, perto – autoestradas. Não há portagens. E, por isso, não há boicotes de portagens. Não há centro de saúde. E, se calhar por isso, também não há muitas doenças. Nem baixas da Segurança Social. Não há esquadra de polícia. E, porventura por isso, não há desordens. Nem crimes. Nem droga. Não há jardins ou, então, toda a aldeia é um jardim. Por isso os miúdos brincam no empedrado da calçada. Não há transportes colectivos. Com uma consequência. Nem há protestos contra o preço das passagens e os músculos enrijecem-se no calcorrear dos montes e dos campos. Não há parques de estacionamento. E, por isso, não há automóveis. E, no entanto, os portugueses da aldeia pagam os seus impostos. Quanto mais não seja, o IVA. E o imposto profissional, no caso do pai no nosso exemplo. Seria de esperar que, neste Portugal de protestos, ouvíssemos alguns na aldeia. Mas não.

Na aldeia só há o Daniel, com algo menos de dez anos e guardador de vacas, a irmã, com pouco mais de dez e ajudante de agricultora, e a mãe dos dois, agricultora e mulher que educa os seus filhos como poucas. Todos têm do trabalho um sentido de dever quase lúdico. Sem horários. Sem férias. Sem intervalos para ir à casa de banho. Sem greves. Sem abonos para profissão de risco. Sem reivindicações. Sem azedume. Sem reclamar. Uma família exemplar.

Ouço o coro de protestos pela reposição das portagens na CREL. Reposição e não imposição, não confundamos. Reposição de algo pretensamente abolido por um Governo irresponsável. Que se dá ao luxo de liderar os protestos. Porventura, com a esperança de que, tal como aconteceu na Ponte 25 de Abril aqui há uns anos, a polícia venha e rasgue alguns fatos. Uma náusea profunda invade-me perante os protestos. Não por mim. Mas pelo Daniel, pela irmã e pela mãe. Será uma injustiça enorme fazê-los pagar o custo daquela via rápida. A eles, que não têm autoestrada. Nem centro de saúde. Nem esquadra de polícia. Nem jardim. Nem parque infantil para os Daniéis da aldeia. Nem aparcamentos. Nem pavilhão desportivo. Nem escola secundária. Para eles que, verdadeiramente, só têm trabalho.

Crónica EXEMPLOS - Magalhães Pinto - "Vida Económica" - 5/1/2003


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Está em curso o encerramento de cerca de 1.300 escolas do primeiro ciclo no centro e norte do país.

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