(continuação)
O dia seguinte era sexta-feira. A minha primeira entrevista, com a direcção da Associação Portuguesa de Clichy, estava aprazada para sábado, às dez da manhã. Deixando-nos o dia livre para uma visita a Paris.
Paris sempre representou para mim uma periódica necessidade de combate ao embrutecimento. A seiva capaz de não deixar finar-se o espírito, à míngua de alimento. Que não o havia em Portugal. Em Portugal, o espírito era um condenado à morte a rondar as últimas. À espera do carrasco de mil rostos. O ramerrão paulatino das nossas vidas pouco menos que estéreis. O mesmo ar sofrido nas caras de todos os dias. Os mesmos amigos de sempre. Os mesmos acontecimentos comezinhos, repetidos até à exaustão. As mesmas inaugurações. Os mesmos inauguradores. A mesma paisagem. A mesma paragem. A sensação duma sujidade empedernida. Da qual apenas Paris me conseguia lavar. Num passeio nas margens do Sena ou num breve momento de contemplação do alto de Monmartre, sentindo nas narinas o cheiro da liberdade responsável, encontrava o detergente para o sarro moral de meses e meses a reportar acidentes e questiúnculas entre vizinhos. Na deambulação pelos corredores do Louvre, admirando uma pintura majestosa de Rubens ou deixando-me absorver pela beleza alada da Vitória de Samotrácia ou pela tranquilidade sublime da Vénus de Milo, reganhava a confiança na humanidade, recolhia, para meses de desgaste, a noção de que o tempo não estava morto. Nem sequer imobilizado.
Assim era, mais uma vez. Com um condimento excitante adicional, desta vez. Maria do Céu estava comigo. E, com o alvoroço do descobridor do que quer que seja, incansável até encontrar modo de partilhar as suas descobertas, ia poder dar-lhe conta do muito aprendido nas minhas anteriores visitas a Paris.
(continua)
Magalhães Pinto
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