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23.5.07

A DUVIDA - 75º. fascículo

(continuação)

XIII

Senti-me feliz, aliviado. Sábado em Paris! Mesmo com trabalho, era uma dádiva. Começou sem Maria do Céu, que deixei no hotel, com instruções de dele se não afastar muito, se quisesse espairecer. Saí para a rua e respirei o ar fresco da manhã, deleitado. A cidade tinha um cheiro especial aos sábados de manhã. As ruas tinham sido lavadas durante a noite, os jardins regados. O acordar da cidade era mais tardio e cheirava ainda a limpo quando saí. Passei por um casal de jovens japoneses, câmara de fotografar empunhada, que me sorriu. Tive o atrevimento de pensá-los nascidos pouco antes de Hiroshima. Nunca se sabe a idade dum oriental apenas pelo aspecto. Deviam sentir-se quase tão felizes como eu. Assobiei baixinho um fado corrido da Amália, humedecendo o ar seco e frio da manhã com o bafo dos meus pulmões. O verde dos telhados do Grand Palais tinha o tom da esperança.

Paris era mais cidade-luz que nunca, graças àquele sol de outono, a pintar de ouro as copas das árvores. Atravessei a Concorde e embrenhei-me pelos jardins das Tulherias. Um arabesco geométrico de verdura e flores. Traçado ao milímetro. Magiquei. Como teriam feito os criadores daquela beleza, à falta dum plano elevado donde apreciar a evolução da sua obra, para serem tão rigorosos na geometria. Medindo, pois claro! Não deviam espetar um planta no chão que não fosse medida a distância com auxílio de transferidor. Caminhei mais alguns quarteirões. Um relance ao relógio fez-me apressar. E foi com remorsos que deixei a superfície, para me emparedar no labirinto do metro, em direcção a uma das zonas mais feias de Paris, a Bastilha. A coluna enorme, no centro da praça, relembrava o assalto libertador. Imaginei-a deitada, empunhada por legiões de revoltados, a derrubar os enormes portões da prisão maldita. Confrangia-me sempre ir para aqueles lados. Fazia-me recordar demasiado o meu país. Os portões da prisão. As legiões de revoltados. Os seus enormes edifícios residenciais mal cuidados. A tinta estalada e a caliça a cair. Os vidros quebrados. A sujidade nas ruas e jardins mal cuidados. Os recantos mais esconsos a tresandar a urina resfriada. A sede da associação portuguesa era lá.

(continua)
Magalhães Pinto

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