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27.5.07

A DUVIDA - 79º. fascículo

(continuação)

XIV

Deixei-me embalar naquela voz rouca, quente, com tonalidades de brisa rasante a sussurar no restolho. Recordava vagamente a de George Brassens. Os seus dedos percorriam as cordas do violão, com a diligência das formigas em dia soalheiro. As notas graves esvoaçavam na penumbra, contorciam-se vagarosamente na abóbada granítica da sala e vinham pousar suavemente nos meus ouvidos. Os poemas satíricos, contestatários, de Villon ganhavam uma doçura particular, naquele cenário e com aquela voz. A combinação era perfeita. Nada como uma antiga prisão para evocar o canto, meio sofrido, meio reivindicativo, dos desprotegidos medievais. As velas acesas, penduradas nas pedras paredes que delimitavam o espaço estreito, para não mais de vinte pessoas, criavam uma atmosfera cúmplice de conspiração. De modernidade, apenas o foco eléctrico fixado no cantor, ele próprio, vestido a preceito, colete e calças de cabedal, camisa de gola e punhos folhados, botins do século treze. Por momentos, esqueci a reacção esquisita de Maria do Céu, quando chegámos. De recuo, como se pretendesse fugir dali.

Devo confessar-te, Maria do Céu! A minha interpretação imediata, quando me sacudiste a mão a segurar-te no braço e recuaste, nas escadas de acesso ao caveau, foi a de que aquele ambiente escuro te trouxera, subitamente, reminiscências do Borboleta Negra. Como lá, as mesas estavam mal iluminadas e acolhiam pares, quase todas, alguns de mãos romanticamente entrelaçadas. De certo modo fiquei contente. Seria, se fosse, um sinal iniludível do meu sucesso na empresa a que me tinha proposto. Se não me enganei, a expressão pintada no teu rosto era de pânico. Que bom, pensei eu. Repulsa. A tua expressão era de repulsa. O puxão firme no teu braço, um pouco firme demais, eu sei, foi ainda dado pelo meu convencimento de que só desenharias uma nova vida em cima da passada, se porfiasses em não a esquecer, se persistisses em fazer da antiga os alicerces da nova. Cheguei mesmo a murmurar-te não adiantar nada fugir, recordas-te? Fugir de fantasmas apenas os torna mais próximos. Vê como eu, também, quiz fugir de fantasmas e acabei no atoleiro da fuga, arrastando-te comigo. Acho não ser necessária muita coragem, Maria do Céu, para esconjurar os fantasmas que vamos deixando crescer em nós desde o berço. Basta percebermos serem criação nossa, basta entendermos não serem eles senão sentimentos deformados pela nossa incapacidade de sentir. Olha, Maria do Céu, os nossos fantasmas íntimos são os filhos defeituosos, os abortos, dum casamento com a Vida condenado ao fracasso. Não te deixaria fracassar. Agarrei a tua mão trémula com firmeza, convencido de que transmitir-te segurança era importante, nesse momento. Decididamente, a minha ingenuidade, adormecida há longo tempo, sob os efeitos do soporífero duma vida cínica e vazia, resolvera acordar, viva, espevitada, naquele serão. Nem sequer suspeitei das razões da tua relutância em tomares o lugar entre o Manuel de Finzes, sentado à cabeceira, e o Miguel Tesoureiro, em frente a mim. Levei à conta de pretenderes ver melhor o que se passava lá à frente. Ou ficar mais próxima da senhora Ana. Fosse por que razão fosse, aceitei tranquilamente a tua reacção. Agradava-me sempre quando te afastavas de outros homens.

(continua)
Magalhães Pinto

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