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25.5.07

A DUVIDA - 77º. fascículo

(continuação)

A minha chegada fez deslocar as atenções. Um, que mais tarde vim a saber ser o tesoureiro da direcção, adivinhou quem eu era e aproximou-se logo de mim. Latagão. Um bom espécime do aldeão português, contudo já um tanto envernizado pela urbanidade francesa. Os outros foram-se chegando, meio a medo, até formarem um semicírculo comigo no centro. Toda a gente queria saber novas. Não fui muito útil para os mais velhos. Sabia lá eu se já havia estrada nova para Tortosendo ou se a fiação do senhor comendador, em Vila Flor, estava a despedir mais pessoal. De maior utilidade fui para os mais jovens. Não, a guerra colonial não ia acabar tão cedo. Os batalhões continuavam a embarcar no Cais de Alcântara com a regularidade dum relógio, atrasado mas a funcionar. Ao ritmo dos caixões desembarcados na véspera ou antevéspera. Os lenços da despedida continuavam a acenar, periodicamente, gaivotas acorrentadas, a voar melancolicamente nas margens do Tejo. Dizia-se que as coisas estavam más na Guiné. Tinham mandado para lá o príncipe dos generais, o Spínola. Mas ninguém podia assegurar a verdade, no meio de todos os boatos a ensombrar as notícias oficiais, sempre optimistas, a colocar a culpa da guerra no leste ou nos corredores daquela malvada da ONU. Desiludi-os um pouco, pondo-lhes a fronteira do regresso bem para mais longe. Não se via disponibilidade para uma resolução política e as actividades guerrilheiras, depois de começarem, não acabariam mais.

Depois foi a minha vez de fazer perguntas. Onde viviam. Embora não me fosse de todo desconhecido, não pude deixar de admirar o espírito gregário da comunidade portuguesa. Pássaros fora do ninho, friorentos, encostados uns aos outros na mira de algum calor. Humano, certamente. Como viviam. Havia de tudo, desde aqueles que, incapazes de maiores privações, tinham conseguido arranjar um appartment, até aos que se amontoavam em qualquer canto, para aforrar uns francos mais, religiosamente enviados para a conta do banco lá na vila. A vida nos bidonvilles. Ah!... Uma miséria, exclamou o tesoureiro. Vi logo que ele pertencia à classe dos apartamentados. A lama do chão à mistura com a lama moral. Algumas das filhas mais velhas tinham escolhido um modo de sobrevivência fácil. Saíam ao meio dia para a Rua de Saint Denis e voltavam, normalmente, horas altas da madrugada. Fácil? Será que era fácil? O que faziam. Houve quem me mostrasse as mãos sem unhas, ficadas no manuseamento da borracha ainda quente. Trocadas por francos. Percebi então porque era preciso ter unhas para sobreviver em França. Em toda aquela gente, franco era uma palavra mágica. Por francos se faria tudo. Por francos se vendia o corpo, se entregava a alma. O ensino das crianças, em escolas portuguesas. Aonde? Os mais conscientes tinham os filhos em escolas francesas. Não era raro os filhos serem os professores dos pais, no ensino dos rudimentos da língua. Porque, no dia a dia, os pais não iam muito além do patois. A assistência das autoridades. A legalização dos clandestinos. O senhor cônsul era uma jóia. A todos atendia bem. Era pena que não fosse mais ajudado pelos de Lisboa. As hipóteses de regresso, ah! isso para quando a casita lá na aldeia estivesse acabada e assegurada fosse a pensão da Sociale! Ou se acabasse a guerra, diziam os mais novos.

(continuação)
Magalhães Pinto

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