(continuação)
Não interrompi o teu silêncio durante largos momentos, Maria do Céu. Dexei-te passear o olhar pela magnificência do conjunto de Chaillot. E senti que as imagens da tua Rala se misturavam difusamente com toda aquela grandiosidade. Olhaste. Num sentido. Noutro. O teu olhar acompanhou, lentamente, como conduzido por uma força poderosa, ali plantada num momento de inspiração, a projecção da Torre em direcção ao espaço. Creio que não te apercebeste, Maria do Céu, da minha expressão de admiração quando falaste de novo para mim. Não tanto por teres golpeado, ao de leve, o meu orgulho naquela obra magnífica. Não tanto por teres afirmado que o rio Douro e as pontes do Porto eram mais imponentes do que o Sena e aquelas todas alinhadinhas, pequeninas, baixinhas, lagartixas imóveis a apanharem os primeiros raios de sol, ainda frios. Mas porque essa manifestação, firme, convencida, constituía a primeira observação crítica que te ouvira, desde o nosso primeiro encontro. Hoje vejo esse acontecimento a uma luz imperceptível na altura. É como se tivesse, nesse instante, rebentado o cordão umbilical que unia as nossas vidas. Era como se fosse a primeira manifestação de vontade própria duma criança até aí dócil e obediente. Era como uma espinha na puberdade. Incomodatícia. Feia até. Mas prenúncio do juízo independente em vésperas de desabrochar. Não importa se tinhas razão ou não. Não importa sequer se o que acabaras de dizer era ou não uma tolice. O importante é teres tido a coragem de exprimir o teu sentir sem tibieza, sem hesitações.
Descemos em direcção ao rio e à Torre Eiffel. Fizemos um passeio de barco no Sena, apreciando a beleza das suas margens e das trinta e três pontes que as ligam. Rondámos a Cité, apreciando o rendilhado granítico de Notre Dame. Creio que Maria do Céu chegou a imaginar ver, lá no alto das torres quadradas, o vulto de Quasimodo protegendo a sua Esmeralda, quando em meia dúzia de pinceladas, lhe fiz o esboço da obra imortal de Vítor Hugo. Contei-lhe a história da Ilha dos Cisnes, implantada no meio do rio pela megalomania dum rei a julgar-se imortal e omnipotente. Desembarcámos no mesmo sítio. Tentei descortinar o ponto onde caía a vertical gravítica da Torre. Coloquei-nos lá. Disse-lhe para olhar para cima. Daquele ponto, a estrutura de aço provoca a sensação dum vórtice cónico, preparado para tudo sugar. Subimos ao terceiro andar da Torre, para uma visão global da cidade. Como se temesse cair, Maria do Céu agarrou o meu braço direito com força e encostou-se a mim.
(continua)
Magalhães Pinto
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