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22.5.07

MEMORIA


Com a alma repleta de asco, com vómitos morais de vergonha, remeto-me ao silêncio no caso da Casa Pia. Esta é a maneira de prestar a minha homenagem aos antigos alunos daquela casa centenária que, arrostando com a vergonha daquilo por que passaram, não hesitam em dar a cara para que acabe um tormento para gerações de crianças, para que sejam punidos os culpados. É a minha homenagem à sua coragem. Por assumirem uma postura que uma sociedade inteira não soube, não quis, assumir.

Para mim, nem sequer serve de lenitivo rever os meus escritos antigos e ver que em Abril de 1993 – há quase dez anos, portanto – eu escrevia o seguinte num jornal da nossa terra, a propósito das crianças prostitutas que via nas esquinas da nossa cidade:

...

"Droga de vida, a desses passaritos espalhados pela cidade. O calor do ninho substituído pelo desejo sexual incontrolado. Em muitos deles, as marcas indeléveis da submissão ao império fugidio dos estupefacientes. Quartos de hora feitos de notas de quinhentos para conseguir uma noite nos braços da droga. Em cada uma dessas aves penugentas ainda, um rosário feito de contas a tresandar a porcaria da vida. Nas mãos, o cheiro de mil sexos frementes. Nos seios, as amolgadelas de mil mãos ensebadas. No rosto, um esgar pretensamente sorridente, de plástico, imutável. E são ainda crianças. Nunca ouviram falar da história da Bela Adormecida. Branca de Neve é, para elas, um revista de fofocas para empregadas domésticas. Se se lhes falar dos sete anões, é bem possível senti-las a fazer contas a quanto rendem sete de uma vez. Mas sabem de cór todos os nomes de calão para as fantasias sexuais mais bizarras. E são ainda crianças!".

Era Primeiro Ministro Cavaco Silva. Era Presidente da Câmara do Porto, Fernando Gomes. Era Presidente da Câmara de Matosinhos Narciso Miranda. Dez anos! E não fizemos absolutamente nada. Aqui como em tantas outras coisas. Será que é desta? Tenho muitas dúvidas. A sociedade portuguesa está corrompida. Remexemos no lodo e o cheiro é nauseabundo. A poluição moral é mais vasta do que a que qualquer petroleiro pode causar no ambiente. Liberdade é um conceito mais associado a libertinagem do que a responsabilidade. Desiluda-se quem pense que é apenas neste aspecto que estamos a apodrecer. Já vimos o que se passa nas polícias. Estamos a ver o que se passa na Justiça. Esperem para quando remexermos nos medicamentos, nos impostos, nos subsídios oficiais do Governo e das Câmaras, nas autorizações para a construção de imóveis, no futebol. Vai chegar o tempo em que nos vai parecer que o melhor é fechar as fronteiras com arame farpado e considerarmo-nos a todos como presos.

Excertos da crónica SILÊNCIO - Magalhães Pinto - "Matosinhos Hoje" - 1/12/2001

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